ESPECIAL – Kissinger chega aos 100 com fama dividida entre gênio e criminoso de guerra
Há quase meio século fora do poder, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA que completa 100 anos neste sábado (27), ainda provoca debate: afinal, gênio da diplomacia ou criminoso de guerra? (via Folha de S. Paulo)
Para o historiador Luke Nichter, professor da Universidade Chapman e especialista no governo Richard Nixon (1969-1974), “não é preciso escolher um lado; ele pode ser herói e vilão ao mesmo tempo.” O que faz de Kissinger influente até hoje é que foi, “goste-se ou não, o secretário de Estado mais relevante da história moderna dos Estados Unidos, alguém que ajudou a criar o mundo em que vivemos hoje”.
Nascido em 1923 na Alemanha como Heinz Alfred Kissinger, mudou-se para os Estados Unidos aos 15 com a família, judia, fugindo do nazismo —até hoje, 85 anos depois, mantém um marcado sotaque alemão.
Em 1969, com a chegada de Nixon ao poder, foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional, assessor máximo do presidente para assuntos de política externa, depois de construir boa reputação como professor em Harvard e trabalhar como consultor em diferentes agências do governo americano.
São dessa época seus principais feitos e controvérsias. Ele é considerado um dos artífices de um período de redução de tensões com a União Soviética, em plena Guerra Fria. No mesmo ano em que assumiu, por exemplo, ajudou a formular as Conversas sobre Limites para Armas Estratégicas (Salt, na sigla em inglês), conferências e tratados entre as duas potências dominantes para acalmar os ânimos.
Mas as controvérsias que, para alguns analistas, dão-lhe o título de criminoso de guerra não são menores que os feitos. Ele autorizou bombardeios americanos ao Camboja, no contexto da Guerra do Vietnã, entre 1969 e 1973, que deixaram 150 mil civis mortos, segundo estimativas mais conservadoras.
Sob sua bênção, a CIA de Nixon auxiliou militares chilenos a desestabilizarem o governo de Salvador Allende desde a posse, em 1970. O golpe de fato, três anos depois, pelas forças de Augusto Pinochet, deu início a uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina. No continente, Kissinger também apoiou o golpe de 1976 na Argentina, bem como a Operação Condor, que criou uma rede para operações coordenadas de repressão nas ditaduras do Cone Sul, que incluíam ainda Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai.
A mão forte de Kissinger ainda aparece em outras partes do mundo, do sul da África ao Timor Leste, passando pelo Oriente Médio, mas, para o historiador David Greenberg, “ele foi extremamente superestimado como diplomata por seus admiradores e detratores”.
Professor da Universidade Rutgers e autor de livro sobre a Presidência de Nixon, Greenberg defende que foi Nixon, não Kissinger, o autor das políticas de distensionamento na Guerra Fria e de abertura da China. “Kissinger as executou, mas não as concebeu.”
Poderoso, Kissinger sobreviveu ao Watergate e permaneceu no cargo de Secretário de Estado no governo do sucessor Gerald Ford, até a derrota dos republicanos na eleição de 1976. Não perdeu a influência, no entanto. Visitou e aconselhou todos os presidentes dos EUA desde então, com exceção do atual, Joe Biden, e permanece aclamado nos círculos de poder não só em Washington, mas também no exterior.
Em entrevista à rede americana CBS neste mês, questionado pelo repórter sobre o que aconteceria se sua secretária telefonasse a Xi Jinping ou a Putin de supetão, ele respondeu que “há uma boa chance” de que os líderes chinês e russo atendam à ligação.
Para ele, os EUA não podem trabalhar pela mudança de regime em Pequim porque, embora uma China democrática seja desejável, um colapso comunista poderia levar a uma guerra civil que geraria instabilidade global. “Não é de nosso interesse levar a China à dissolução”, afirmou.
Cego de um olho, com a voz rouca e baixa e acumulando uma série de cirurgias cardíacas, tem estudado os efeitos da inteligência artificial na ordem global, fenômeno que ele compara à capacidade de disrupção que a invenção da imprensa teve no século 15 —ele afirma que a IA vai exacerbar a competição entre EUA e China. Aos 100, Kissinger pretende continuar influenciando o mundo.
FATOS DA VIDA DE HENRY KISSINGER
1923: Nasce Heinz Alfred Kissinger em Fürth, na Alemanha
1938: Fugindo do nazismo, muda-se aos 15 com a família, judia, para os EUA, onde adota o nome Henry
1943: Recebe cidadania americana e serve no Exército como intérprete de alemão
1954 – 1969: Professor e diretor de centro de pesquisa na Universidade Harvard, onde havia feito graduação, mestrado e doutorado
1956 – 1968: Consultor em diferentes agências do governo, primeiro no Departamento de Defesa, depois no Conselho de Segurança Nacional, na Agência de Controle de Armas e Desarmamento e por fim no Departamento de Estado
1969: Assume como Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon (republicano). Participa da organização das Conversas sobre Limites para Armas Estratégicas, conferências e tratados entre EUA e União Soviética para reduzir as tensões na Guerra Fria
1969 – 1973: Defende bombardeios no Camboja, em extensão à Guerra do Vietnã; estimativas mais conservadoras falam em pelo menos 150 mil civis mortos
1970: Com o apoio de Kissinger, a CIA sob Nixon auxilia militares no Chile a desestabilizar o regime Salvador Allende desde a posse até o golpe de 1973. Também apoiou o golpe de 1976 na Argentina, quando uma junta militar derrubou a presidente Isabel Perón
1971: Visita a China secretamente para abrir caminho a visita histórica de Nixon no ano seguinte, em esforço para afastar o país comunista da União Soviética
1972: Volta à China e reúne Nixon, Mao Tsé-Tung e Zhou Enlai, em viagem que marca abertura do país asiático para o mundo
1973: Torna-se Secretário de Estado. Recebe o Nobel da Paz pelas negociações pelo fim da Guerra do Vietnã junto do vietnamita Le Duc Tho, que recusa o prêmio
1974: Nixon renuncia, sob pressão do escândalo de Watergate, mas Kissinger permanece no governo sob o presidente Gerald Ford
1977: Deixa o cargo de Secretário de Estado com a vitória do democrata Jimmy Carter
1982: Abre sua bem sucedida empresa de consultoria
2002: Indicado por George W. Bush para liderar a comissão que investigou o 11 de Setembro, renuncia ao posto um mês depois alegando conflito de interesses com clientes de sua empresa de consultoria.
Transcrito da Folha de S. Paulo