ESPECIAL: O frio de quem está em situação de rua em JP
“A rua é uma escola. Nela, se aprende muita coisa, inclusive a sorrir”. A afirmação é de Tarcísio Monteiro, mochileiro baiano que, por inconveniência do destino, está em situação de rua desde que, há pouco mais de uma semana, foi furtado junto de seu companheiro de viagem, no Marco Zero, em Recife. Agora, depois de muitos passos e alguns quilômetros rodados em caronas, Tarcísio está em João Pessoa e, pela primeira vez, nas ruas. Assim como ele, muitas são as pessoas que, hoje, vivem em situação de rua na capital paraibana. Ao contrário de Tarcísio, no entanto, para a maioria delas, a rua não é sinônimo de impermanência. Lá, além de lidarem com a vulnerabilidade e a exposição, essas pessoas também precisam enfrentar fome, sede, riscos e, especialmente neste período do ano, o frio.
Acompanhada de um grupo de voluntários e da amiga Ana Paula Martins, Cristina Maria de Jesus vai às ruas semanalmente entregar refeições para a população de rua que habita o Centro da capital. Em meio a quentinhas recheadas e idas e vindas entre a praça João Pessoa e os fundos da Caixa Econômica Federal, na rua Elizeu César, Cristina oferece mais do que alimento, oferece reconhecimento às pessoas que ocupam as ruas da cidade quando ninguém mais circula por elas.
Cristina e Ana iniciaram o projeto no Natal do ano passado, quando tentavam fazer com que o espírito natalino chegasse de alguma maneira nessas pessoas. Como trabalha vendendo quentinhas, esta foi a forma que encontrou para ajudar. Hoje, o projeto cresceu, ganhou um nome – Corações que Alimentam – e já se tornou um compromisso semanal com a diminuição do abismo que há entre essas pessoas e seus direitos enquanto seres humanos.
Quando Cristina chega com as marmitas, que alimentam centenas de pessoas, não se trata apenas de comida; se trata de existência. Oferecer alimento a quem é ignorado, muitas vezes rejeitado pela sociedade, é, também, reconhecer que essas pessoas existem e que, como qualquer ser humano, também têm as mais básicas necessidades, como comer ou se abrigar da chuva e do frio que, durante o inverno, castigam mais.
“É triste saber que existe tanta gente sem um teto para o qual voltar no fim do dia. Por isso, estamos aqui oferecendo o que podemos: alimento, roupas, um cobertor… Se a gente parar para pensar em tudo o que uma pessoa precisa para existir com dignidade, é pouco. Mas já é alguma coisa, com certeza. E nós nos orgulhamos em poder proporcionar esse momento no dia deles”, conta Cristina de Jesus.
Sugestão de quebra
Durante a distribuição de quentinhas desta semana, a equipe do Corações que Alimentam recebeu um pedido diferente. Não é que o objeto do pedido fosse inusitado ou pouco solicitado entre as pessoas acompanhadas pelos voluntários, mas a forma com que a solicitação ocorreu espantou. Sem pedir uma quentinha, um homem jovem, alto e de sotaque diferente perguntou se o grupo teria algum cobertor para doar. “Acho que temos. Espere um pouquinho que, quando a distribuição da comida acabar, a gente olha para você, ok?”, respondeu uma das voluntárias do projeto. Em seguida, o rapaz sumiu, retornando apenas quando a grande fila de pessoas esperando o jantar para matar a amarela dor da fome acabou.
Ao receber a sacola esverdeada com um pequeno cobertor marrom dentro, o paranaense Bernardo Tramujas explicou: “Na verdade, eu sou mochileiro. Eu e meu amigo fomos roubados em Recife. Levaram todas as minhas coisas, todo o nosso material e o dinheiro que a gente tinha. Até as coisas se acertarem, estamos em situação de rua”. Agora, Bernardo e Tarcísio Monteiro têm vivido na pele o que já observavam enquanto viajavam por aí, o preconceito.
“Quando chegamos em João Pessoa, eu estava imundo. Como levaram minhas coisas, eu não tinha o que usar e, depois da saga para chegar aqui, estava imundo. Nos pontos de ônibus, a gente notava as pessoas olhando feio, se afastando. Parece que tem um bicho se aproximando. Eu estou vivendo isso agora. E eles, que passam por isso todos os dias?”, comenta o paranaense.
Contraditoriamente, a invisível, embora notável a olho nu, população de rua não é incluída nos censos demográficos do Brasil, porque a metodologia adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, por exemplo, realiza o recenseamento exclusivamente com pessoas domiciliadas. Sem casas, essas pessoas não existem para as estatísticas e são um incômodo para a sociedade.
Mesmo tendo família, Luiz deixou de ser Reginaldo Diniz Bezerra, mais um brasileiro recenseado, há 15 anos, quando, ao se indispor com a irmã, foi expulso de casa. Hoje, o nome de batismo estampado nos documentos que guarda por baixo da camisa, junto ao peito, só serve para comprovar que ele é gente. Nas ruas, no entanto, o senhor de 52 anos é Luiz e ponto.
“Eu não me esqueço que sou gente e não deixo ninguém me tratar como se não fosse. Não moro na rua, porque quero. Moro porque existo. Não bebo, não fumo, não sou viciado. Pode perguntar para qualquer pessoa que tem casa se ela quer morar na rua; não quer. Ninguém quer”, diz Luiz que, na mesma noite, também recebeu um cobertor para se cobrir enquanto se abriga do frio, no Ponto de Cem Réis.
Desde 1963, não chovia em João Pessoa como os 178,4 milímetros que caíram no dia 7 deste mês. Isso significa que em 60 anos não chovia como choveu em julho. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, o último registro deste tipo foram os 150,1 milímetros de 5 de julho de 1963. Em junho, também não foi muito diferente. Mês passado foi o junho mais chuvoso dos últimos 4 anos. E, apesar de haver pancadas ao longo do dia, a maior parte dessa chuva caiu à noite, quando os recenseados estavam em casa, protegidos por um teto. De baixo das marquises, no entanto, os invisíveis sentiram cada milímetro de chuva que desaguou na capital. “Depois de 15 anos a gente aprende a se virar, mas seguro não é. Chove e molha a gente. Faz frio e a gente só tem a roupa do corpo. Aí faz como? Não faz”, conclui o catador de materiais recicláveis.
Sugestão de quebra
Integrante do Movimento de Moradia Mãos Dadas (MMMD), Daniel Gomes acompanha há anos a luta de Luiz por reconhecimento e, na medida do possível, contribui para que ele tenha acesso a uma vida cada vez mais digna. É que, nos anos 1990, o pernambucano acolhido pela Paraíba sentiu na pele o que é estar em situação de rua. “Uma vez eu estava dormindo embaixo de um ponto de ônibus. Acordei com o cheiro do álcool. Queriam atear fogo em mim. Não vou me esquecer nunca como é a sensação de saber que, por pouco, você não está morto. Por isso, não paro a caminhada até ver Luiz com um teto que possa chamar de seu”, diz o representante do MMMD enquanto relata contente que seu tutorado está inscrito no programa de habitação popular do Governo do Estado, voltado à população de baixa renda e em situação de vulnerabilidade social.
Sugestão de quebra
É impossível não notar que, nos últimos anos, sobretudo durante a pandemia de Covid-19, o número de pessoas em situação de rua em João Pessoa aumentou consideravelmente. Ao longo dos semáforos da rua Empresário João Rodrigues Alves, nos Bancários, por exemplo, é difícil não encontrar pessoas pedindo ajuda à noite. Sob as marquises dos estabelecimentos comerciais já fechados, famílias inteiras fogem do sereno após passarem o dia oferecendo lavagem de para-brisa para os motoristas que aguardam os semáforos abrirem.
Em meio a gritos de crianças, pessoas conversando e muitas outras jantando na Praça João Pessoa, Tarcísio Monteiro afirma que, na rua, há muita gente boa. “Elas são arredias, porque muitas já não têm mais percepção do que é o conceito de lar. Você precisa trabalhar a mente da maioria para que elas entendam que são dignas de alguma coisa, qualquer coisa, nem que seja afeto. É natural. Essas pessoas não estão preparadas para terem uma mesa farta, uma cama quente. Mas isso não significa que eles não mereçam”, conclui.
Sem documento de identidade, Bernardo Tramujas encontrou auxílio no Centro Pop da rua 13 de Maio, um espaço onde os indivíduos em situação de rua são acolhidos, recebem atendimento diverso e têm sua autonomia incentivada. Lá, ele e Tarcísio se alimentam, mas não permanecem. “Estou acostumado com ambientes mais frios, porque sou do Sul. Isso não muda muita coisa quando estamos na rua. A brisa esfria o chão, esfria as paredes. Na madrugada, você sente de qualquer jeito, em qualquer lugar do mundo. Eu sei como eles se sentem. E mesmo assim, o pouco que eles têm, dividem. Estar nas ruas é ensinamento. Viver nas ruas, é resistência”, garante o mochileiro que, com a venda de artesanatos, em breve, terá uma nova barraca; um novo teto.
Matéria assinada por Carol Cassoli para o Jornal A União
Foto: Edson Matos