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ESPECIAL: Com sede da organização invadida, no Centro, voluntárias resistem e continuam trabalho

Muito antes de o assistencialismo ganhar corpo na Paraíba, a solidariedade feminina já costurava suas redes de apoio. Em 1953, enquanto o estado lidava com os impactos da seca, Dona Anna Alice Mello de Almeida, esposa do então governador José Américo, fundava a Organização das Voluntárias, no coração de João Pessoa.

Ao lado da primeira-dama, essas mulheres acolheram, vestiram, escutaram e ajudaram milhares de pessoas por meio de ações culturais, assistenciais e de saúde. Hoje, 72 anos depois, essa história corre o risco de desaparecer sob os escombros da própria sede da entidade, que se encontra invadida e vandalizada.

Sem endereço fixo, elas seguem atuando em favor da população, enquanto lutam para reaver o que construíram, com dignidade, ao longo das décadas. Desde 2022, após uma pausa forçada, em razão da pandemia, a organização enfrenta um impasse que parece não ter fim. Com a suspensão temporária das atividades, durante praticamente dois anos, a fim de preservar a saúde das voluntárias — em sua maioria, idosas —, o prédio ficou vazio e acabou se tornando alvo de ocupações irregulares. Desde então, a cada nova tentativa de retorno, uma nova família instala-se no local.

Segundo a atual presidente da entidade, Liriam Soares, parece existir uma rotatividade entre os invasores, o que dificulta o andamento dos processos na Justiça, gerando um ciclo de frustração e impotência. Como resultado disso, a sede da Organização das Voluntárias, na Av. João Machado, transformou-se em um verdadeiro cenário de destruição. Sumiram objetos históricos e 16 máquinas de costura doadas pelo ex-presidente Café Filho, na década de 1950, que nunca foram recuperadas.

“Destruíram tudo: documentos, fotos, móveis. O que tem lá, hoje, chama-se destruição”, salienta Liriam, destacando que, apesar das providências tomadas, desde o registro do Boletim de Ocorrência até a perícia da Polícia Civil, nenhum item reapareceu.

Entretanto, mais do que os bens roubados, o que realmente dói, na visão da presidente, é a falta de respeito com o legado construído pela entidade.

“Setenta anos de história não podem valer menos do que 45 dias de invasão”, frisa.

Esvaziamento

Impedida de cumprir sua vocação para a assistência social, a organização segue travando uma batalha judicial para garantir o direito de ocupar sua própria sede, uma propriedade privada no Centro Histórico de João Pessoa. Para Liriam, a situação chega a ser paradoxal: “Desde o início, a organização cuidou justamente da população mais vulnerável. E, agora, não podemos retomar nossas atividades porque tem gente morando lá”.

O impacto é direto: cerca de 60 idosos, que visitavam o espaço pelo menos duas vezes por semana, ficaram órfãos de cuidados. “Se antes eles não tinham muita coisa, hoje têm menos ainda. Mas, infelizmente, não temos onde atendê-los”, lamenta Liriam.

A interrupção das atividades também compromete o trabalho que era feito de forma contínua, como a entrega de enxovais, cestas básicas, cadeiras de rodas e outros itens a hospitais e famílias vulneráveis. Além disso, a sede abrigava cursos, oficinas e ações educativas, destinadas à geração de renda. “A gente continua ajudando do jeito que pode, mas tudo virou um grande improviso”, explica.

Iniciativa acolheu retirantes do Sertão

Sem estrutura, o impacto da organização é, atualmente, bastante limitado. Mas a essência do trabalho permanece viva, assim como seu valor histórico. Quem passa, hoje, pelo casarão em ruínas talvez não imagine que o lugar já foi ponto de encontro de mulheres da elite paraibana, que ali confeccionavam enxovais, preparavam cestas básicas e organizavam campanhas para quem mais precisava. Construído especialmente para a Organização das Voluntárias, o espaço também foi palco de eventos sociais que marcaram época, como lembra o historiador José Octávio de Arruda Mello.

“Minha tia era voluntária, participou da fundação. Cheguei a frequentar casamentos naquele salão”, recorda, salientando que a entidade combinava mobilização, solidariedade e confraternização. Ele conta que a organização surgiu em resposta à grande seca que devastou a Paraíba em 1952, quando famílias inteiras, sem acesso a alimentos ou água, migraram do Sertão para a capital.

Diante dessa crise, a então primeira-dama do estado, Anna Alice, articulou a criação da entidade, visando mobilizar as paraibanas para acolher os retirantes que chegavam à cidade. No espaço, havia salão, cozinha e área para costura, tudo pensado para que o local se tornasse uma base de operações humanitárias. Além disso, a iniciativa incentivava doações, por meio de festas, rifas, almoços beneficentes e até partidas de futebol.

Posteriormente, as arrecadações eram distribuídas nas praças de João Pessoa. Entretanto, conforme José Octávio, após o fim do governo de José Américo, muita coisa mudou. Com a ascensão de seus adversários políticos, a organização passou a receber pouco ou quase nenhum apoio institucional, o que a fez agir de maneira mais autônoma. Ainda assim, as voluntárias permaneceram firmes ao longo das gerações, apoiadas pelo esforço de suas fundadoras.

Para o historiador, o maior legado da entidade não está nas paredes do antigo casarão, mas na própria memória da capital.

“A Organização das Voluntárias é parte da história de João Pessoa e isso não pode ser ignorado”, defende.

Questão de honra

Mesmo sem sede, as voluntárias seguem fazendo o que podem. Reúnem doações, ajudam na compra de remédios, distribuem cestas básicas. E fazem isso de forma fragmentada, como pessoas físicas. “A gente continua ajudando da forma que dá, mas, sem a sede, tudo fica mil vezes mais difícil”, reforça a presidente da entidade, Liriam Soares.

No auge de sua história, a organização chegou a manter mais de 150 voluntárias ativas, mas, hoje, são apenas 15 atuando por contra própria. Apesar da dificuldade, Liriam acredita que a reconstrução da sede virá com o tempo: “O que os invasores destruíram nós vamos reconstruir”. Segundo ela, o que está em jogo não é apenas a posse do imóvel, mas a reconstrução de um espaço que, durante 70 anos, acolheu, ensinou, cuidou e ressignificou vidas. Dessa forma, lutar por ele é, também, honrar o trabalho das mulheres que ali atuaram.

 

Texto de Priscila Perez para o Jornal A União desta sexta-feira, 18/4

Foto: Evandro Pereira/A União

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