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Caetano Veloso, eterno cinéfilo, diz que nada supera as telonas e critica streaming; livro conta relação do cantor com o cinema

As ligações de Caetano Veloso com o cinema são longas e intensas, como testemunha “Cine Subaé”, uma antologia definitiva de escritos do compositor sobre filmes que marcaram sua vida e obra. O livro, editado pela Companhia das Letras e organizado por Claudio Leal e Rodrigo Sombra, reúne, além dos artigos da juventude de Caetano, fragmentos de conversas, depoimentos e entrevistas posteriores.

Como dizem os autores na introdução ao volume, o conjunto —que impressiona— contesta a convicção do autor de que houve um abandono da crítica em sua trajetória.

O músico Caetano Veloso
O músico Caetano Veloso – Foto: Rodrigo Sombra

Dos 18 aos 21 anos, o jovem cinéfilo da baiana Santo Amaro da Purificação se dedicou à crítica cinematográfica, como dizem os organizadores, “numa atmosfera encantatória de província, nos cinemas Santo Amaro, Subaé e São Francisco”. Foi neste último que Caetano viu pela primeira vez “Os Boas-Vidas”, de 1954, e “Noites de Cabíria”, de 1957, de Federico Fellini, com repercussões existenciais em sua adolescência.

Em resposta por email a algumas perguntas enviadas pelo repórter, Caetano menciona a forte influência do cinema europeu em sua formação. “Sou de uma geração que via filmes franceses e italianos tanto quanto americanos. Minhas canções mais pop falavam de Brigitte Bardot, [Jean-Paul] Belmondo, [Alain] Delon, não de estrelas hollywoodianas.”

“Sempre senti cinema em tudo o que faço em música popular. Várias pessoas já me falaram sobre isso e nenhuma delas me surpreendeu. Os concretos foram os primeiros a dizer essas coisas sobre mim e sobre Gil, embora Gil nunca tenha sido um cinéfilo (nem Augusto)”, afirma Caetano.

Foi naquele ano de 1967 que Glauber Rocha deu mais um passo em sua inquietante trajetória com o lançamento de “Terra em Transe”, filme crucial para o que veio a se conhecer como tropicalismo. Não por acaso, no álbum “Tropicália 2”, lançado em 1993, Caetano incluiu o samba “Cinema Novo”, uma exaltação ao movimento.

As relações do compositor com o cinema só se expandiram desde então, num vasto painel de experiências, diálogos críticos e realizações, da composição de inúmeras trilhas e canções para filmes até a sua própria incursão como diretor, em “O Cinema Falado”, lançado em 1986.

Você certa vez apontou um dilema presente numa fase do cinema brasileiro que dizia respeito à dificuldade de reunir arte e concessões à cultura comercial. ‘O que temos visto são filmes que não conseguem ser obras de arte nem agradar ao grande público’, você escreveu. Como vê hoje a evolução desse impasse? Era mais provável no Brasil que esse casamento ocorresse na canção popular?

Canção a gente faz com um violão na mão —ou mesmo sem nenhum instrumento por perto. Cinema é filho da industrialização. Pede avanço tecnológico para começar. O cinema novo surgiu com ares de genialidade, mas com grande incapacidade comercial.

Nos anos 1970, conseguiu sucessos de público e respeito técnico por parte desse público. A canção popular já era uma parte importante da indústria brasileira quando o cinema novo nasceu. As canções, mesmo as feitas na caixa de fósforo ou apenas no gogó, eram gravadas e transformadas em discos que fizeram sucesso desde que essa técnica surgiu. Hoje temos um cinema com algum histórico de realização firme, gerações de técnicos que seguram a base. Mas agora parece que tudo é para virar streaming.

Filmes de Fellini foram muito marcantes em sua juventude e isso tem a ver com o fato de você ter se tornado mais italiano ou europeu em matéria de cinema do que americano. A ponto de ter discordado veementemente de Bernardo Bertolucci sobre a suposta inadequação da língua italiana para o cinema. Como se deu essa influência?

O cinema americano sofreu um baque lá pela segunda metade dos anos 1950 —e o europeu mostrou força de exportação. O renascimento de Hollywood se deu através de fãs americanos do cinema da Europa.

Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Peter Bogdanovich e outros olhavam para o cinema da Itália, da França e da Alemanha. Então, sou de uma geração que via filmes franceses e italianos tanto quanto americanos. Minhas canções mais pop falavam de Brigitte Bardot, Belmondo, Delon, não de estrelas hollywoodianas. Eu via Françoise Arnoul nua e [Marcello] Mastroianni falando italiano, língua que me parecia muito mais bonita do que o inglês. Aos 15 anos, vi “La Strada” e fiquei deslumbrado

Mas, depois dos filmes “de autor” feitos em Hollywood, a meca estadunidense voltou a dominar. Hoje só se vê filme americano nos cinemas —e filmes de outros países só são vistos em cinemas especializados, em horários específicos. Mas há toda uma vida de imagem e som na internet, as séries e filmes em streaming. Não gosto de ver séries. E ainda prefiro ver filmes no cinema.

Sim, gostei muito do “Leão”. É o filme mais forte que Glauber fez no exterior. Só o vim a ver em 2020. Imagens dos africanos descendo de uma árvore e formando um bando é deslumbrante. Glauber estudou e namorou o marxismo, mas não o vejo como marxista. Ele queria ir além do marxismo. Mas era, sim, anticolonial. “O Leão de sete cabeças” é um forte poema anticolonial, feito por um brasileiro na África. Glauber decepcionou seus admiradores europeus. Bem, ao menos os que arriscaram ser produtores de seus filmes. Esperavam rever os figurinos e cenários de Hélio Eichbauer (que os tinham encantado quando viram “Antônio das Mortes”) em filmes feitos por ele na Espanha, na África ou na Itália.

De filmes recentes que você tenha visto, o que chamou a sua atenção? Boa parte da produção cinematográfica contemporânea está voltada para séries nas plataformas de streaming. Você consegue acompanhar?

Gostei de “Maestro”. Achei uma peça refinada de cinema americano pós-influência europeia. A fotografia em cores é muito rica ali. A montagem tem um ritmo poético, musical. Os enquadramentos são de extrema elegância, e os diálogos fascinam —e vêm num regime de falas e pausas que é tocante.

O filme foi recebido com desgosto nos Estados Unidos. Todos os meus amigos inteligentes e informados com quem estive na turnê que fiz por lá recentemente falam mal do filme. Reagem à ênfase na bissexualidade do protagonista. Quando eu dizia que tinha gostado, eles me olhavam com cara de gente do primeiro mundo sendo paciente com a ingenuidade de alguém que tinha vindo de um lugar atrasado como o Brasil. Mas vi “Maestro” na televisão.

Um filme brasileiro que me tinha sido recomendado por uma amiga eu fui ver no cinema —”Sem Coração”. Também gostei muito. Adolescentes num lugar de praia nordestina. As imagens são bonitas, e o sentimento que atravessa é complexo, sutil, vivo.

Conversando com um pós adolescente muito talentoso, fiquei sabendo que ele achara o filme chato e errado ao frisar a imagem em que a menina preta “sem coração” afinal toca a mão da menina branca que estava sexualmente apaixonada por ela. Há certa ingenuidade no filme, mas sua beleza vai bem acima. Eu teria vontade de dizer isso, mas fiquei mais impressionado pelo desprezo estético do jovem à busca da beleza daqueles que também são jovens diretores.

 

Folha/UOL

Foto: Rafael Strabelli/Divulgação

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