Crianças sofrem crimes online dentro do quarto, e pais não fazem ideia, diz juíza
Você sabia que dixx é uma conta secreta usada por crianças e adolescentes no Instagram, à qual os pais não têm acesso? E que essa conta, utilizada normalmente para postar besteiras normais da idade, também pode ser um espaço em que eles, muitas vezes sem ter ideia do que estão fazendo, acabam se tornando autores ou vítimas de crimes?
Foi com um vídeo no qual explica aos pais o que é dixx –trecho de uma entrevista ao programa “Sem Censura”, da TV Brasil– que a juíza Vanessa Cavalieri, 47, viralizou.
Titular há nove anos da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, ela testemunhou o surgimento de um novo perfil de menores infratores: os de classe média e alta que cometem crimes ligados às redes sociais. Acompanhou a onda de ataques a escolas e conversou com todos os meninos detidos no Rio que haviam planejado ou cometido esses crimes, 100% deles articulados pela internet.
Foi a partir dessas experiências que resolveu militar na defesa da infância e da adolescência no ambiente digital. Em palestras, fala da fofoca que soa inocente, mas destrói crianças e adolescentes e, para acender o alerta máximo em pais e professores, cita também crimes inacreditáveis, como os descobertos na plataforma Discord, em que jovens chantageiam meninas de 12 anos a ponto de levá-las, por exemplo, a fazer sexo com um cachorro ou a abrir o peito do animal e arrancar o seu coração.
Cavalieri defende o letramento digital da sociedade, o banimento dos celulares nas escolas, o monitoramento, pelos pais, do que crianças e jovens fazem na internet, além de um acordo entre as famílias, como propõe o Movimento Desconecta, para que os filhos ganhem o primeiro celular com pelo menos 14 anos e só possam entrar nas redes sociais a partir dos 16. Os motivos ela detalha nesta entrevista à Folha.
Como a sra. descobriu o que é dixx?
Quando a minha filha mais velha tinha 13 anos, ela criou uma conta no Instagram com o combinado de que eu teria o login e a senha para olhar sempre que achasse necessário. Um tempo depois, me pediu para fazer uma conta dixx e me explicou que era para postar coisas entre amigos. Ela concordou em me passar o login e a senha, mas pediu que eu não a seguisse no dixx. Entendi que era uma questão de pertencimento, porque todos os adolescentes têm.
Com o tempo, e conversando com outras pessoas, percebi que os pais devem ficar atentos ao dixx, porque é um espaço que, embora tenha besteiras normais de adolescente, palavrões, pequenas transgressões, pode mostrar problemas maiores, como o consumo de álcool e a exposição disso, com fotos de adolescentes apagados em festas. Essas são oportunidades para explicar que não só o consumo de álcool não é adequado, como também a exposição de pessoas dessa forma.
O que a sra. tem visto nos ‘explanas’?
São usados por jovens e até por crianças. Há “explanas” feitos por alunos do 6º, 7º ano, com fofocas superpesadas. O aluno exposto sofre bullying, é excluído. Vi uma publicação terrível sobre uma menina de 12 anos, que dizia: “Ela pagou boquete para um menino do ensino médio”. Se é verdade, em primeiro lugar, ela havia sido vítima de um estupro. E, mesmo que seja mentira, circula e vira verdade. Postam fotos e vídeos de casais de adolescentes ficando em festas. E isso é crime, e de organização criminosa: é um grupo, com método, agindo com regularidade para cometer crimes de difamação, pornografia infantil e cyberbullying.
Ouvi um relato de uma menina de 14 nos que foi “explanada” em um perfil do bairro. Pessoas que nem a conhecem apontam o dedo para ela nas ruas. A menina teve que mudar de escola, mas não consegue fazer amigos. E foram coisas que ela nem fez, como ficar com o namorado de uma amiga. Enquanto me contava isso, a menina teve uma crise de ansiedade, chorou desesperadamente e ficou com falta de ar. Eles fazem isso como se não fosse nada demais, só uma fofoquinha feita no recreio.
Quando a sra. decidiu militar pela proteção da infância e adolescência no ambiente digital?
Há nove anos sou titular da Vara da Infância e da Juventude do Rio, a única da cidade que julga adolescentes infratores. Aqueles casos de ataques a escolas vieram para mim. Alguns se efetivaram e muitos foram evitados com a atuação da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Tive a oportunidade de conversar com esses meninos, olho no olho, e ouvir suas histórias. E eram histórias de muita violência e negligência que sofreram nas escolas por anos, sem que ninguém tivesse percebido.
Nunca me esqueço do primeiro com quem conversei, em 2018. Tinha 16 anos e havia esfaqueado colegas. Ele me falou que havia um carro na porta da escola, com um homem mascarado. Disse que tinha que matar os colegas, ou esse homem mataria a sua família. Também ouvia vozes que o mandavam matar os colegas. Três meses antes, havia tentando o suicídio. Passou por um hospital público e não houve encaminhamento para atendimento da saúde mental. Bem antes, aos 4 anos, incendiou a casa porque as vozes mandavam. Como estava em sofrimento havia 12 anos e ninguém viu? A família tem pouco esclarecimento, e a escola também não viu.
Reuni um time e desenvolvemos um projeto de prevenção à violência nas escolas, o Protocolo Eu Te Vejo. Uma das estratégias são palestras para pais, alunos e professores, sobre crimes digitais. Pergunto aos adolescentes, por exemplo, se sabem o que é o crime de pornografia infantil. Eles dizem: “Ah, é quando uma criança é abusada”. Respondo que, sim, é isso também, e pergunto: “Mas sabiam que, quando vocês filmam um casal de amigos se beijando na festa, um passando a mão no outro, e postam, isso também é crime de pornografia infantil?”
O que chamou a sua atenção nesses nove anos na Vara da Infância e Juventude?
A chegada dos crimes ligados às redes sociais. Há nove anos, o adolescente que chegava ao Judiciário era, basicamente, um menino pobre, muitas vezes em situação de evasão escolar, que cometia três tipos de crimes: roubo, furto e tráfico. São crimes ligados a uma aquisição rápida de renda para um menino em situação de privação.
Isso continua, é um problema social, mas, cada vez mais, começaram a chegar jovens de classe média e alta cometendo crimes que eu nunca tinha visto, como apologia do nazismo, tortura de animais, estupro virtual. Começaram a chegar investigações da Interpol, do Homeland Security [órgão dos EUA que monitora terrorismo internacional], os ataques às escolas, o caso do Discord, noticiado no ano passado, de uma organização criminosa com adolescentes e vítimas de 11, 12, 13 anos.
Foram fatos gravíssimos, e aconteceram dentro de casa. Ou seja, poderiam ter sido evitados. Imagina uma menina de 12 anos, que foi obrigada a fazer sexo com o cachorro ao vivo… O pai e a mãe estavam em casa, mas não viram porque a garota estava no quarto, e eles não supervisionavam suas redes sociais.
Os criminosos fazem chantagens e levam meninas a fazer coisas absurdas. Tem um vídeo de uma menina abrindo o peito de um cachorro e arrancando o coração dele. Elas fazem coisas assim aos prantos, e os meninos assistem rindo.
Os pedófilos não estão mais em parques e shoppings procurando crianças mal vigiadas. Estão onde as crianças estão: TikTok, Instagram, Roblox, Fortnite
Nas palestras com pais, quando pergunto quem sabe o que é o Discord, metade levanta a mão. Já os adolescentes me perguntam do King, líder de uma organização criminosa do Discord condenado a 25 anos de prisão. As famílias não conhecem o Discord, e os jovens sabem até o user ID [identificador de usuário] de criminosos. E são adolescentes de classe média e alta, sem supervisão dos pais na internet.
Crianças e jovens passam anos expostos a discurso de ódio, ideologias extremistas, comunidades que planejam ataques a escolas… 100% desses ataques foram combinados via internet. Se as famílias supervisionassem, poderiam ter sido evitados. Tenho um caso de um pai que viu que o filho estava combinando um ataque à escola, na zona sul do Rio, e denunciou. Ele impediu um massacre.
Famílias de classe média e alta não estão conseguindo fazer essa supervisão dos filhos na internet. Em que medida esse controle é viável na sociedade brasileira?
O ambiente digital é novo, e muitas famílias ainda acham que o filho está seguro no quarto. Só que, se ele está no quarto com internet, está exposto a tudo. Os pedófilos não estão mais em parques e shoppings procurando crianças mal vigiadas. Estão onde as crianças estão: TikTok, Instagram, Roblox, Fortnite…
As famílias precisam passar por um letramento digital e, quando entenderem a gravidade, vão começar a fazer o seu papel, a adiar o máximo possível o momento de dar o primeiro celular para os filhos e, quando derem, a terem os cuidados necessários. Aos poucos, a informação está chegando às pessoas.
Há relação entre o adoecimento psíquico, o uso do celular nas escolas e a violência escolar. Quando eles deixam de conviver na escola para ficar com o olho na tela, deixam de estabelecer conexão. O outro não é mais o meu amigo, ele não é ninguém, não importa para mim.
Houve um aumento da sensação de solidão dos estudantes dentro das escolas, constatado pelo Pisa [avaliação internacional], a partir de 2012, ano da entrada massiva dos smartphones no ambiente escolar. Os adolescentes pararam de brincar, namorar, jogar bola, de lidar com os conflitos naturais da convivência, estabelecer conexões humanas, o que é essencial para a saúde mental. Com isso, a violência na escola aumentou.
Não só os ataques, mas incivilidades, desrespeito, tratamento pouco gentil entre crianças e adolescentes, e, principalmente, o cyberbullying. E o cyberbullying é mais frequente quando os celulares são permitidos nas escolas. Muitas escolas baniram o celular neste ano, e a disciplina, o foco e a atenção melhoraram. Por outro lado, a violência entre pares diminui porque eles passam a desenvolver relações humanas.
Para quem é contra o banimento e pensa “Ah, devemos ensinar a criança e o adolescente a evitar esse conteúdo”, eu queria lembrar que, de um lado, temos uma criança e um adolescente com um cérebro em formação, ainda sem funções essenciais para esse autocontrole. E, do outro lado, adultos, com o cérebro formado, profissionais como psiquiatras, neurocientistas, psicólogos que ganham salários milionários das big techs para tornar o celular cada vez mais viciante.
Essa luta é impossível. O letramento digital é importantíssimo, deve acontecer em casa e na escola, mas não é preciso liberar celular na escola para isso.
RAIO-X | VANESSA CAVALIERI, 47
Juíza da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro há nove anos. É professora de direito da criança e do adolescente na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). Atua como coordenadora do Cejusc (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania) de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. É membro do International Visitors Leadership Program (Programa de Liderança para Visitantes Internacionais) do Departamento de Estado dos Estados Unidos, em um programa de proteção às mulheres e às crianças. Desenvolveu o Protocolo Eu Te Vejo, um projeto de prevenção à violência escolar, com palestras a pais, professores e estudantes, além da interlocução com as secretarias de educação.