ENTREVISTA – “Sinto que confio ainda mais em mim”, diz Rebeca Andrade antes de Paris
Rebeca Andrade chegou aos Jogos de Tóquio, em 2021, como a ginasta que tentava confirmar seu potencial após superar três lesões graves no joelho direito. Ainda não tinha medalhas nas grandes competições, mas voltou do Japão com duas: ouro no salto e prata no individual geral.
Rebeca Andrade chegará aos Jogos de Paris, daqui a menos de duas semanas, consolidada como uma das grandes ginastas do planeta. Nos três Campeonatos Mundiais realizados desde Tóquio, ela conquistou nove medalhas, incluindo um ouro no individual geral em 2022 e outro no salto, desbancando Simone Biles, em 2023.
Na França, Rebeca poderá disputar até seis medalhas, o que a torna o nome com maior potencial de conquistas da delegação brasileira. Além de rivalizar com Biles no salto, está entre as favoritas no individual geral e no solo. A brasileira também tem chances nas barras assimétricas, na trave e na disputa por equipes (junto com Flávia Saraiva, Jade Barbosa, Júlia Soares e Lorrane Oliveira).
O desempenho nos últimos anos fez com que Biles enxergasse nela uma rival à altura. Nos bastidores do último Mundial, enquanto as atletas esperavam uma cerimônia de pódio, a americana reverenciou Rebeca ao simular que tirava uma coroa da própria cabeça e colocava na da brasileira. O maior nome do esporte neste século voltou a competir no ano passado, depois de um afastamento para tratar questões de saúde mental.
Esse status faz Rebeca desembarcar em Paris mais confiante? Sem dúvidas, como ela conta em entrevista à Folha. “A cada ano, a cada conquista, eu me coloquei em outro patamar. Estou muito mais madura. Não posso dizer que eu vou acertar tudo, não é isso, mas eu sinto que confio ainda mais em mim”, afirma.
Ao mesmo tempo, a atleta diz não se sentir pressionada na competição que pode consagrá-la definitivamente. “Não consigo controlar as expectativas das outras pessoas. A única coisa que eu posso controlar sou eu mesma.”
Nesta entrevista, Rebeca também conta como reagiu à reverência de Biles e fala sobre representatividade.
A Rebeca que chega aos Jogos de Paris é muito diferente da Rebeca que chegou aos Jogos de Tóquio?
De personalidade não. Mas como atleta eu amadureci bastante. A cada ano, a cada conquista, eu me coloquei em outro patamar. Não posso dizer que eu vou acertar tudo, não é isso, mas eu sinto que confio ainda mais em mim. A cada competição que eu vou, eu tenho mais consciência daquilo que estou fazendo. A gente tem que trabalhar isso todos os dias. Tem dias que eu estou cansada e não consigo pensar em nada, que eu falo “ai meu Deus do céu, é hoje que ‘eu vou de arrasta'”. Mas aí a gente para, respira, pensa e volta. Cabeça no lugar porque não pode se dar ao luxo, principalmente faltando tão pouco tempo para a competição mais importante das nossas vidas.
Você sente que chega com uma carga maior de pressão agora?
Eu não me sinto pressionada, de verdade mesmo, porque não consigo controlar as expectativas das outras pessoas. A única coisa que eu posso controlar sou eu mesma. Tenho que fazer a minha melhor apresentação da minha maneira. Independentemente do resultado final, se vai ter medalhas, se não vai ter. É claro que quando a gente erra, a gente fica chateado, mas é um erro que a gente se conforma. Erros acontecem também, faz parte do esporte. O que me preocupa é se eu não estiver fazendo o meu máximo aqui dentro [do ginásio].
Você consegue estar sempre dando seu máximo?
Eu estou sempre dando meu máximo. Meu máximo de 100% ou meu máximo de 1%. Se eu estou muito cansada, vou fazer o meu máximo daquele dia. Quando eu sinto que realmente não dá para fazer, eu converso com o Chico [Porath, treinador de Rebeca e da seleção brasileira]. Ele me treina desde os sete, oito anos e me conhece até do avesso, sabe quando eu estou mentindo, quando eu estou inventando, quando eu não quero fazer, quando estou com preguiça… Às vezes o meu corpo está bem, mas a minha cabeça está com problemas. E ele consegue respeitar os meus limites.
Apesar da confiança que você demonstra, você também tem momentos de dúvida antes de se apresentar?
Ah, eu me sinto nervosa. Antes de fazer a apresentação, eu gosto sempre de orar, mas procuro conversar comigo também. Tem até alguns vídeos em que dá para ver minha boca mexendo, eu estou sempre falando “calma, você consegue, respira, você já fez isso 1 milhão de vezes, confia”. Isso ajuda a me manter um pouco mais tranquila.
No último Mundial teve aquela cena que viralizou, da Simone Biles passando a coroa para você. O que você pensou naquele momento?
A gente, eu e a Flávia [Saraiva], que estava junto, sentiu que foi algo muito genuíno da parte dela. Eu até falei assim: “Não, minha filha não faz isso não, pelo amor de Deus, a ginástica precisa de você, o mundo precisa de você”. A Simone é de outro mundo. Ela é uma ginasta muito incrível e foi sensacional competir com ela e ver como ela estava diferente das últimas competições. Eu me lembro de um Mundial em 2018 em que ela conversou comigo e falou para eu não desistir [apesar das lesões] porque eu era muito talentosa. E ela mal me conhecia. A partir dali, eu criei um carinho muito grande por ela.
Você acha que pode ser bom para ela ter uma rival como você, que já mostrou que pode competir de igual para igual, pelo menos no salto? Isso pode diminuir um pouco da pressão que ela carrega?
Eu li uma entrevista em que ela falou que é bom ter uma pessoa que faça ela cravar mais. Eu acredito que, de certa forma, para ela seja bom, assim como para mim também é bom sentir que eu represento algo desse tipo para ela, uma adversária que faz ela querer fazer mais. E juro, ela estava muito feliz competindo. Parecia que estava leve. Os Estados Unidos são o melhor melhor país da ginástica artística, e a gente sente um pouco dessa pressão, como é para as meninas sempre ter que ganhar, estar no topo. Dessa vez parecia que ela estava competindo para ela. Claro que querendo vencer, mas foi muito diferente. Eu fiquei muito feliz por vê-la daquela forma.
Você sempre destaca a questão da representatividade e da importância de ser uma ginasta preta. Da mesma forma como a Daiane dos Santos foi uma referência para você, hoje você é uma referência para outras meninas. Dá para notar os impactos disso no dia a dia?
Eu fico muito no ginásio, mas pela internet consigo ver bastante e tem muito mais escolas de ginástica. E é isso, ter oportunidade. Não é que não tenham talentos, não é que não tenham pessoas para representar. Na minha época realmente eu não conseguia ver muitas pessoas pretas, que eu falasse “nossa, quero fazer aquilo ali”. E hoje em dia a gente consegue ver muito mais. Poder ser um espelho e uma inspiração para tantas crianças, e principalmente para as crianças pretas, é algo muito grandioso. Eu sei como isso foi importante para mim e como é importante você ter uma referência na vida para continuar sonhando.
Além do seu exemplo, o que mais precisa ser feito em termos estruturais, de política esportiva, para que isso aconteça?
Para falar a verdade, eu não sei o que precisa ser feito. Hoje eu posso só representar, que é muita coisa, mas eu espero que um dia eu possa abrir um lugar que tenha não só ginástica, mas outros esportes, para dar mais oportunidades. É muito fácil você querer patrocinar e apoiar quando o atleta já está em alto nível. Mas e a base? Eu tive sorte porque comecei num projeto social, mas com pessoas que acreditaram e escolheram me apoiar também, mesmo sem saber se eu seria uma medalhista olímpica.
RAIO-X | REBECA ANDRADE, 25
A ginasta nasceu em Guarulhos (SP) em 8 de maio de 1999 e teve três lesões graves no joelho direito antes de alcançar as maiores conquistas da carreira. Ganhou duas medalhas olímpicas nos Jogos de Tóquio, em 2021 (ouro no salto e prata no individual geral), e possui nove medalhas em campeonatos mundiais (três delas de ouro). Disputará em Paris sua terceira edição de Jogos Olímpicos.
Transcrito da Folha de S. Paulo
Foto: weekpedia