ESPECIAL – Congresso pressiona com conta extra de ao menos R$ 24 bi e ameaça planos de Haddad
Ministro quer zerar déficit em 2024, mas capacidade de articulação política gera incerteza sobre resultados
Uma conta extra de ao menos R$ 24 bilhões em propostas em tramitação no Congresso que ampliam as despesas ou reduzem a arrecadação pode interferir nos planos do ministro Fernando Haddad (Fazenda) de zerar o déficit em 2024.
A equipe econômica pretende levantar mais R$ 168,5 bilhões em receitas no próximo ano para alcançar esse objetivo —desse valor, cerca de R$ 70 bilhões ainda dependem de aval do Legislativo, e outros R$ 98 bilhões já foram validados, mas as estimativas são vistas com ceticismo pelo mercado financeiro.
Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão deliberativa –
Enquanto busca a aprovação das medidas restantes, os negociadores políticos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) atuam para tentar barrar o avanço de iniciativas que possam dificultar os planos de Haddad.
A lista de propostas inclui, do lado das receitas, a prorrogação da desoneração da folha de pagamento de 17 setores (R$ 9,4 bilhões) e a desoneração da contribuição previdenciária de prefeituras (de R$ 7,2 bilhões a R$ 9 bilhões).
O projeto foi aprovado sem resistência da base aliada no Senado Federal e, depois, sofreu mudanças no plenário da Câmara em 30 de agosto.
Após a derrota, Haddad disse que o avanço da proposta foi “um pouco atabalhoado” e que o Ministério da Fazenda está aberto a discutir alguma saída razoável para os municípios, em uma tentativa de desidratar a proposta antes da nova votação do Senado, última etapa que resta pendente.
Há ainda uma mudança nas tarifas de transmissão de energia que pode reduzir em R$ 1,2 bilhão o bônus que a Copel pagará à União pela renovação de concessões de usinas. Um PDL (projeto de decreto legislativo) já foi aprovado na Câmara e está em análise em uma das comissões do Senado.
Do lado das despesas, as pressões vêm de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para transferir servidores de ex-territórios para os quadros da União, a um custo de até R$ 6,3 bilhões.
A proposta foi originalmente apresentada em 2018 pelo senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), hoje líder do governo no Congresso Nacional. Foi a pedido dele que o texto foi desarquivado e, na sequência, aprovado no plenário do Senado. O governo sabe que não tem como barrar o avanço da PEC, mas vai tentar limitar seu alcance na Câmara.
Outros riscos ainda não estão totalmente mensurados pelo governo, como a derrubada dos vetos ao projeto de lei do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).
O governo comemorou a aprovação da proposta, que restabeleceu o poder do Ministério da Fazenda de dar o voto de desempate quando os julgamentos de conflitos tributários empatam. Sem essa condição, o governo perdeu disputas bilionárias.
No entanto, o Congresso inseriu no projeto do Carf uma série de “jabutis” —jargão legislativo para uma matéria sem relação com o tema principal do projeto em análise— que poderiam drenar a arrecadação. Eles foram vetados por Lula, mas o Legislativo ainda pode derrubar os vetos.
Há ainda um projeto de lei no Senado que busca ampliar a lista de setores cujas empresas podem ingressar no regime simplificado de tributação, o Simples Nacional.
O objetivo é contemplar companhias da área de suporte, análises técnicas e tecnológicas, pesquisa e desenvolvimento de nanotecnologia. Não há estimativa de impacto.
O governo também mantém o monitoramento de projetos que podem ter efeito relevante sobre as contas, ainda que sua aprovação seja um risco mais remoto no momento.
Tramita na Câmara um projeto de lei complementar que propõe atualizar o teto de faturamento para uma empresa entrar no Simples Nacional, dos atuais R$ 4,8 milhões para R$ 8,7 milhões anuais.
Em meados de 2022, a Receita alertou que a proposta poderia gerar uma renúncia de R$ 66 bilhões. De lá para cá, porém, a estimativa não foi atualizada. Além disso, o projeto travou no fim do ano passado, sob resistências do PT e do MDB, e não teve novas movimentações em 2023.
Além do risco de surpresas indesejadas, a equipe econômica precisa administrar a possibilidade de frustração em seu próprio plano de ajuste.
Haddad enviou um amplo cardápio de propostas ao Legislativo, que inclui a taxação de recursos em paraísos fiscais (offshores) e de fundos exclusivos no Brasil, usados pelos “super-ricos” para manter seus investimentos.
O governo, porém, já sabe que as medidas devem sofrer mudanças no Congresso, diminuindo o potencial de arrecadação. Áreas do próprio governo têm alertado para o excesso de otimismo do Ministério da Fazenda com as ações.
A pasta prevê arrecadar R$ 35,3 bilhões no ano que vem com a tributação de benefícios fiscais concedidos pelos estados no âmbito do ICMS, com base em uma decisão favorável do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Documento do Cetad (Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros) da Receita, divulgado pelo jornal Valor Econômico e também obtido pela Folha, mostra que o órgão alertou o governo de que a efetivação dessa arrecadação depende “de diversos eventos futuros e incertos”.
“Recomenda-se cautela aos formuladores da política fiscal quando da utilização de tais estimativas, devendo-se ter em mente a possibilidade de frustração de parcela do aumento de arrecadação decorrente das medidas analisadas”, afirma a nota.
Diante de incertezas no cenário fiscal do próximo ano, o governo pediu para que a CMO (Comissão Mista de Orçamento), no Congresso, deixe para novembro a votação do projeto de LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024.
A LDO dá as bases para a formulação do Orçamento, prevê a meta fiscal do ano e deveria ter sido votada até julho —antes do recesso parlamentar.
Líderes governistas no Congresso negam que a intenção de adiar a votação seja para ganhar tempo para eventual mudança na meta de déficit zero em 2024. Até hoje, porém, nem mesmo o relatório preliminar da LDO foi votado na comissão, o que dá margem ao governo para fazer alterações no projeto.
A meta de déficit zero enfrenta ceticismo dentro do governo e é alvo de críticas de aliados de Lula, como a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR).
A necessidade de administrar essa delicada equação entre projetos de interesse e aqueles que podem atrapalhar os planos de Haddad ocorre em um momento em que o governo Lula enfrenta dificuldades na formação de uma base fiel, principalmente na Câmara, mesmo depois de ter cedido espaços para o PP e o Republicanos no primeiro escalão do Executivo.
O imbróglio mais recente envolve a troca da cúpula da Caixa Econômica Federal.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse em entrevista à Folha que havia acordo para que o banco fosse entregue de “porteira fechada”, mas Lula o desmentiu em manifestação pública recente, não dando garantias sobre isso.
O impasse se soma à rebelião de bancadas como a ruralista e evangélica, que protestam contra decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) que, na avaliação deles, usurpam competências do Legislativo. Por ora, só devem avançar na Câmara projetos de interesse dos parlamentares.
Apesar dos percalços políticos, o primeiro semestre foi avaliado positivamente pelo ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais), responsável pela articulação política do Palácio do Planalto.
Em evento da XP, no início de setembro, Haddad também afirmou que, “até aqui, o Congresso tem sido bastante parceiro”. No discurso, ele acrescentou que os congressistas aprovaram todas as medidas econômicas que foram levadas pelo governo durante o primeiro semestre, e que agora o país está “colhendo os frutos”.
Ao mesmo tempo, porém, o ministro da Fazenda deu o recado de que, se o Congresso afastar pautas bombas e medidas populistas, o país pode terminar o ano “muito bem”.
Na entrevista à Folha, Lira declarou que, mesmo com as dificuldades do governo para formar uma base, não houve pauta bomba. Além disso, ele sinalizou apoio ao plano de déficit zero.
“O Parlamento continuaria votando como está [se não tivesse reforma ministerial], [aprovando] as matérias de interesse do país. Nós nunca tivemos uma pauta bomba.”