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ESPECIAL – “Descobriram agora que o negro é capaz, talentoso e bonito”. Djavan conta como foi convite de Bolsonaro para ser ministro da Cultura

Era um dia de descanso em São Miguel dos Milagres. Djavan estava sentado na porta de sua casa no litoral alagoano, contemplando o movimento do mar e das pessoas, quando foi surpreendido por um homem montado em uma bicicleta. O emissário trazia um recado: em Brasília, a quase 2.000 quilômetros dali, cogitavam o seu nome para chefiar o Ministério da Cultura no futuro governo de Jair Bolsonaro (PL).

Tratava-se de Gilson Machado, sanfoneiro que presidiria a Embratur (Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo) e comandaria o Ministério do Turismo durante o mandato do agora ex-presidente. Naquele dia, conta Djavan, o aliado de Bolsonaro queria saber o que o cantor achava da ideia de ser promovido a ministro.

“Eu acho péssimo. Eu não quero ser ministro de nada”, afirma o artista à coluna, relembrando a resposta que deu ao sanfoneiro quando o episódio ocorreu, no final de 2018. “Trocamos mais quatro ou cinco palavras, e ele foi embora um pouco decepcionado. Nunca mais me voltou o assunto. E nunca mais o vi por ali também”, diz Djavan.

Passados mais de cinco anos desde o convite, o artista ainda guarda vivas memórias do governo pregresso. Por vezes, ele se refere ao período como um momento de “obscurantismo” que o motivou a compor a música “Iluminado”. “Eu queria uma letra simples para que todos pudessem cantar a esperança”, explicou em um dos shows de sua atual turnê “D”.

Djavan nos bastidores do Espaço Unimed, em São Paulo, antes de apresentar show de sua turnê “D” – Lucas Seixas/Folhapress

Sobre os palcos, o cantor de 75 anos parece um menino. Djavan se move por toda a superfície com a facilidade de quem dá um passo para o lado. Ele dança, brinca com a plateia e até faz um certo charme ao se desfazer de uma capa e de um par de óculos escuros —tudo isso enquanto a cenografia, assinada por Gringo Cardia e composta por obras de artistas indígenas e periféricos, muda a cada bloco de músicas.

À coluna, ele jura que nenhum movimento é ensaiado. “O que eu vou tendo vontade de fazer, eu vou fazendo. Sem nenhum ensaio, sem prestar atenção”, afirma. “Estou ali, a música rolando, aquele público a favor, enorme, me instigando. E não dá outra. Eu me divirto bastante.”

O artista lançou recentemente o álbum “D — Ao Vivo em Maceió”, que traz a gravação do show inaugural da atual turnê. “A repercussão está sendo absurdamente maravilhosa. Fiquei muito feliz porque foi o primeiro show da turnê. Achei que ia me surpreender muito mal quando fosse mexer nisso, eu temia que nós não tivéssemos cantado e tocado bem, mas foi o contrário”, conta ele, animado. Um registro audiovisual da apresentação também está previsto para vir a público em breve.

Acostumado a afirmar que sua obra alcança ouvintes de diferentes gerações e classes sociais porque congrega diversos gêneros musicais, Djavan diz seguir atento às novidades do mercado fonográfico e reverenciar novos nomes da música brasileira, a exemplo de Emicida e Djonga. Em outras palavras, ele diz estar “numa fase” de escutar a mesma coisa que seus filhos adolescentes.

“Eu tenho muito o que aprender com essa turma que está vindo, seja do rap e até da MPB. Escuto tudo porque preciso, antes de mais nada. Preciso saber o que está acontecendo, por que está acontecendo, como é que eles fazem isso. Ao mesmo tempo, sou um homem de muita sorte por poder desfrutar da benesse que é ser buscado por essa nova geração.”

Djavan resgata memórias de sua juventude em Maceió ao revisitar as influências musicais que diz terem moldado a sua arte. Aos 13 anos de idade, conta, passou a frequentar a discoteca particular de um médico que vivia na cidade e reunia desde vinis de jazz a álbuns flamencos, africanos e italianos.

“Você imagina eu, aos 13 anos de idade, morando num lugar improvável a ter acesso a um arsenal como esse, descobrindo tudo isso ao mesmo tempo. Eu queria saber como se fazia um bolero, um samba, um funk. Eu queria saber o que diferenciava um gênero do outro. Nessa discoteca, eu pude descobrir as grandes cantoras americanas do jazz, como Ella FitzgeraldSarah Vaughan e Nina Simone.”

Mas não foi só o vasto acervo do doutor que semeou no menino a devoção pela música. Sua mãe, que ganhava o sustento como lavadeira, botava o filho para ouvir Angela Maria e Dalva de Oliveira. “O meu canto foi moldado por elas”, afirma.

Djavan nos bastidores do Espaço Unimed, em São Paulo, antes de apresentar show de sua turnê “D”; na foto, o retratista Lucas Seixas faz uso de iluminação lilás, cor que dá nome a um dos hits do cantor – Lucas Seixas/Folhapress/Reprodução

Quem ouve Djavan cantar e falar custa a acreditar que ele um dia foi uma criança briguenta. Mas ele garante que sim. “Todos os dias eu saía de casa todo bonitinho, com a camisa branca passadinha, engomadinha, a bermuda azul-marinho. Era o meu uniforme da época. E tinha um menino chamado João Neguinho que bastava eu olhar para ele para ficar enlouquecido.”

“Quase todos os dias, invariavelmente, eu chegava em casa todo latanhado, todo rasgado, todo sujo. Em geral, eu ganhava [a briga], porque ele era mais fraco do que eu. Mas também apanhava. E chegava em casa e apanhava de novo”, conta ele, rindo.

A música, afirma o cantor, foi o que curou um pouco de sua braveza —mas não toda ela, alerta. “Ainda hoje sei que tenho um gênio forte. É óbvio que, como me tornei um homem mais consciente de tudo, eu não vou sair brigando com ninguém. Mas eu espero que ninguém me chame para brigar”, brinca, gargalhando.

Criado numa casa com dois irmãos e dois primos mais velhos, Djavan diz ter sido o temporão que ninguém esperava nem queria. Seu pai, um “descendente de holandês, louro, dos olhos azuis”, era um caixeiro-viajante que o abandonou aos três anos de idade. Apesar da ausência e de todas as adversidades impostas pela pobreza, é com admiração e graça que ele lembra do tempo em que viveu no bairro do Farol.

“Minha irmã ficou muito chateada quando eu nasci porque sabia que era ela que ia ajudar a me criar”, diz, rindo. “Mas ela era uma pessoa incrível. Quando eu nasci e ela viu aquele pretinho fofinho, gordinho, bonitinho, ficou apaixonada.”

“Minha mãe só tinha o primário, mas era uma mulher muito sábia. Me ensinou muito. E tinha uma firmeza de caráter admirável. Querer exigir que as pessoas mais pobres tenham consciência política quando elas estão ali sem saber o que dar para os filhos para comer… Isso é muito difícil. Mas nunca vi a minha mãe fraquejar quando se tratava de firmeza de caráter. Nunca vi. Ela era uma grande mulher.”

Embora sua terra natal seja a mesma de políticos influentes como o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do senador Renan Calheiros (MDB-AL), e apesar de ser cortejado por autoridades que vão aos seus shows, o cantor afirma não ter nenhuma relação concreta com muitos dos nomes que frequentam o noticiário político.

Ele diz, inclusive, ter rejeitado uma proposta surgida em Maceió que queria trocar o nome do bairro Cruz das Almas para “Oceano”, em homenagem a uma de suas músicas mais célebres. “Eu estive lá, e o prefeito (JHC, do PL) foi me visitar para fazer essa oferta. Eu disse para ele: ‘Mas você combinou isso com o povo? O povo sabe disso? O povo quer isso?’. ‘Ah, não’ [o prefeito teria respondido]. ‘Então, não’”, conta.

Djavan se diz satisfeito com a Presidência de Lula (PT), embora reconheça que a relação do governo com o Congresso Nacional não seja das mais amistosas. “Não é fácil conviver com um Congresso como o nosso, com interesses múltiplos e quase sempre passando ao largo do interesse do povo.”

Sob Bolsonaro, ele diz ter temido a possibilidade de um retrocesso antidemocrático se concretizar. “Eu sentia muito medo com relação a tudo isso. Mas, graças a Deus, conseguimos nos livrar dessa ideia louca que alguns tinham. Por mais dificuldade que o Brasil tenha hoje, ele é uma democracia. E só numa democracia você pode vencer as dificuldades inerentes a um Estado democrático. Quando você vive na ditadura, a dificuldade é a própria vida.”

Para além da divergência política, o governo anterior trouxe para o cantor o dissabor de se ver no epicentro de boatos que o descreviam como um apoiador de Bolsonaro. “Aquilo foi terrível. E aí eu descobri também coisas importantes: desmentir, na internet, não existe. Quanto mais você desmente, mais aquilo ganha força. O que vale para as pessoas é questionar alguém que não tem culpa no cartório.”

Djavan se diz otimista ao olhar para o Brasil do passado e o do presente e perceber o que chama de avanços em relação à pauta racial. E afirma se alegrar ao pensar que contribuiu para que artistas negros pudessem ocupar espaços de prestígio, como aqueles que o consagraram.

“Hoje, quando eu vejo a televisão coberta de atores negros, sinto uma alegria tão grande. Isso é a refundação de valores”, afirma. “A televisão descobriu o negro. Quando isso começou, uns cinco anos atrás, eu ficava torcendo para que não fosse um modismo. Pelo quanto isso se manteve, estou vendo que não. Descobriram agora que o negro é capaz, é talentoso e é bonito.”

Djavan nos bastidores do Espaço Unimed, em São Paulo, antes de apresentar show de sua turnê “D” – Lucas Seixas/Folhapress/Reprodução

Com uma agenda repleta de shows, Djavan afirma não ter qualquer pretensão de parar. Além das apresentações da turnê “D”, o artista tem marcado presença em festivais como o Tim Music Rio, que ocorre na capital fluminense neste domingo (2), o Na Praia, em Brasília, e o Turá, em São Paulo —esses dois últimos, previstos para os meses de junho e julho.

Ele, tampouco, quer se aventurar em imaginar as possibilidades que tecnologias como a inteligência artificial podem criar para sua obra no futuro, como ocorreu no caso dos Beatles, que lançaram uma música inédita no ano passado a partir do uso do recurso.

“Eu não penso nisso porque não penso em morrer, digamos assim”, diz ele, rindo. “Quero trabalhar o tempo todo. Mas espero que as pessoas não tenham necessidade de fazer isso, porque o meu legado não é pequeno, a minha obra não é pequena. Eu trabalho sem parar desde que comecei, continuo trabalhando e vou continuar trabalhando até o fim. O que vai acontecer depois já não me interessa.”

Fonte: Folha de S. Paulo/Coluna Mônica Bergamo

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