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ESPECIAL – Estupro tem punição exemplar no Brasil, mas vítimas são desacreditadas, dizem especialistas

Em um período de exatos seis meses e sete dias, a hora de dormir, o banho e as ausências da mãe dentro de casa foram atravessados com terror por uma menina de nove anos, em São Paulo.

A ação penal que narra o que ela sofria e condena o padrasto a quase 17 anos de prisão aponta que ele, “por diversas vezes”, praticou atos libidinosos contra ela.

Mudanças de comportamento, como passar a deitar encolhida na cama, com as mãos escondendo a genitália, foram percebidas por pessoas próximas.

Tristeza, medo de estar perto de outros homens e irritabilidade, entre outras sequelas, foram registrados em laudo psicológico.

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Catarina Pignato

O padrasto alegou inocência, e a mãe da menina disse que a criança poderia estar inventando. “A palavra da vítima tem especial importância e merece todo crédito, desde que se ajuste aos demais elementos e circunstâncias que emergem dos autos”, frisou a juíza na sentença.

Decisões judiciais e investigações em que outros elementos falam mais alto do que a palavra de quem sofre a violência sexual —e levam a consequências diversas, como revitimização e absolvição de potenciais culpados— estão no centro de uma série de análises e estudos levantados pela Folha para o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, neste sábado (25).

“A principal consequência é a perpetuação da violência, a permanência da violência sexual, porque quando o abusador é denunciado e não é punido, ele se sente legitimado, se sente protegido”, diz Luciana Temer, doutora em Direito, professora da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta, dedicado ao enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes no país. “E a vítima se sente desestimulada.”

Casos de acusação falsa são apontados como minoria e não são ignorados pela professora. Mas ela observa que meninas e mulheres são desacreditadas independentemente disso.

Mitos e preconceitos entram em cena no contexto, segundo especialistas, e tentam invalidar o que a vítima sofreu.

“A sociedade não sabe o que é estupro, não acredita na vítima e acha que é tudo ‘mimimi’. A gente precisa mudar a cabeça de todo mundo”, analisa Temer, destacando a educação sexual nas escolas como chave para isso.

“Embora essa crença vá de encontro a estudos que mostram que o percentual de falsas acusações de estupro é baixíssimo, próximo a 2% do total de denúncias, essa ideia parece imperar inclusive no Judiciário”, ressaltam. Para eles, não corresponder ao estereótipo da “mulher honesta” traz o risco de ter a credibilidade questionada.

Os pesquisadores alertam que estereótipos como esse atrapalham o acesso das vítimas à Justiça e atuam como atalhos cognitivos para a tomada das decisões judiciais, levando a sentenças enviesadas. Programas de conscientização e capacitação, inclusive do sistema Judiciário e de profissionais da saúde, são apontados como caminho para que esses rótulos sejam identificados e combatidos.

A tese “A Desconfiança em Relação à Palavra da Vítima e o Sentido da Punição em Processos Judiciais de Estupro”, apresentada pela pesquisadora Daniella Georges Coulouris, na USP, questiona: “Com exames de corpo de delito não conclusivos e sem testemunhas presenciais, como é possível que uma denúncia seja consistentemente elaborada pela Promotoria e que uma sentença condenatória seja satisfatoriamente justificada pelos juízes?”.

O trabalho analisa a jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça), no ano de 2022, com relação às provas que se somam à palavra da vítima em crimes sexuais.

“A análise demonstrou que, na maioria dos casos, ‘as demais provas’ são características da própria palavra da vítima, como coerência e ausência de razão para incriminar o réu, bem como testemunho de terceiros que não presenciaram o fato, mas que souberam da história por meio da vítima, o que reflete as dificuldades probatórias nesse tipo de crime”, disseram os autores.

Nos processos de crimes sexuais, “o problema de como provar” é apenas a ponta do iceberg, analisa a Natália Petersen, doutora em Direito, professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia e autora do livro “Estupro: Uma Abordagem Jurídico-Feminista”.

“Se formos olhar de uma perspectiva geral nesse tipo de delito, vamos ter, primeiro, a vítima que nem sabe que foi vítima. Quando ela identifica, o problema seguinte é a vergonha, pois a sociedade reiteradamente aponta a vítima como responsável ou corresponsável pela ocorrência dos delitos”, diz.

Além disso, ela aponta preconceito e mais percalços. “Nossa rede de acolhimento é falha. Muitas vezes as vítimas são submetidas a arguições recheadas de descrédito e desconfiança sobre elas mesmas, uma vez que nos processos geralmente não se tem fotos, vídeos, gravações. A palavra delas é vista com desconfiança em 99% das vezes”, diz a professora, reforçando que, “no geral, a mudança precisa ser de mentalidade”.

“Não tem como ser de outra forma, pois do que adianta uma lei que traga uma punição exemplar se a gente cai nas mãos de um juiz ou juíza que tem um pensamento machista?”

O Código Penal Brasileiro define estupro como o ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena é de seis a dez anos de reclusão.

Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) publicado neste ano estima que, por ano, no Brasil existam 822 mil vítimas, a maioria delas do sexo feminino, com idade inferior a 14 anos.

No Ceará, um dos crimes de maior repercussão neste ano foi protagonizado pelo marido de uma tia da vítima, segundo a Polícia Civil. O dia ainda estava claro quando o homem foi filmado, pela câmera do celular, abusando da criança, uma menina de seis anos.

Vídeos de fragmentos do que se passou na casa acabaram no status do WhatsApp dele e, quase duas semanas depois, o levaram à prisão por suspeita de estupro de vulnerável.

Na primeira vez em que foi ouvido na delegacia, dois dias após o ocorrido, ele foi solto depois do depoimento porque, segundo a Polícia, não houve flagrante.

Uma moradora da cidade disse à Folha que o abuso mexeu com a população, pois acreditam que a própria criança gravou e postou o vídeo.

Trazer consciência à sociedade sobre esses casos, diz Luciana Temer, começa a gerar desconforto e estimula as pessoas a quebrarem o silêncio, a denunciarem mais.

 

Texto de Renata Moura para a Folha de S. Paulo

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Foto: Pexel

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