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ESPECIALÍSSIMO – “Descobri, meio século depois, por que Chico não gostou de perfil dele”

Da colunista da Folha de S. Paulo Teté Ribeiro, filha do repórter José Hamilton Ribeiro

Jornalista narra, em sua coluna na Folha, as circunstâncias em que um perfil de Chico Buarque publicado há mais de 50 anos foi escrito e como descobriu, ao conversar com seu pai durante a pandemia de Covid-19, as razões do músico não ter gostado do texto.

Leia o texto de 1972 clicando aqui, republicado pela Folha por ocasião dos 80 anos de Chico Buarque, ou leia o texto completo de Hamilton Ribeiro logo abaixo do texto de Teté. Simplesmente imperdível!

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Teté Ribeiro

“Tem mais samba no encontro que na espera”, escreveu Chico Buarque em 1966. Meu pai, o repórter José Hamilton Ribeiro, não concorda com essa prerrogativa.

Ele me contou que, durante os encontros com Chico Buarque para a reportagem publicada originalmente na Realidade em fevereiro de 1972, disse isso ao cantor e compositor, que retrucou: “Bota isso no seu samba”.

Perfil de Chico Buarque destacado na capa da revista Realidade em fev. de 1972 – Reprodução

A matéria foi escrita a quatro mãos e publicada na capa da revista em fevereiro de 1972. Não tenho a menor lembrança disso. Soube que ela existia muitos anos depois, nem sei precisar em que situação.

Mas, quando descobri, achei que poderia fazer uso dela para encontrar o Santo Graal para uma jornalista de cultura: uma entrevista com Chico Buarque. Não seria eu a fazer, mas, como editora da revista Serafina, ia fazer o pedido em nome do meu pai, e o Chico não ia resistir ao reencontro.

Assim eu fiz, mais vezes do que dá coragem de admitir. A resposta, sempre depois de algum suspense, era a mesma: “Não”. A cada lançamento de álbum, de livro, de show, lá ia eu tentar mais uma vez. E nada, nunca.

Chico Buarque era quase unanimemente adorado por sua obra (e sua figura, ninguém é louco de negar). Mas meu pai era bastante querido por seus entrevistados. Pelo menos os que eu conhecia.

Até que um dia, durante a pandemia de Covid-19, ocasião em que meu pai se isolou em uma fazenda em Uberaba e de onde nunca mais voltou, contei a ele sobre minha saga de anos em busca do Chico. Ele disse que talvez soubesse a razão de tanto desencontro.

“Parece que o Chico não gostou da matéria porque somei o que ele teria ganhado de dinheiro até então e ficou claro que ele estava rico.”

No final dos anos 1960, meu pai tinha virado uma certa celebridade por conta de um acidente de trabalho que lhe arrancou um pedaço da perna esquerda na Guerra do Vietnã. Foi em março de 1968. Ele tinha 32 anos.

Quando o perfil de Chico Buarque foi publicado, o cantor estava com 27 anos de idade, seis de carreira e tinha finalmente explodido com o álbum “Construção”.

Foto de perfil de dois homens com cabelo escuro sentados frente a frente em uma mesa, cada um trabalhando em uma máquina de escrever. Há um quadro na parede ao fundo e uma luneta à esquerda e, à frente deles, um móvel com estofado azul
José Hamilton Ribeiro (esq.) e Chico Buarque trabalham na residência do cantor, na Lagoa, no Rio de Janeiro, em reportagem publicada em fev. de 1972 – Fernando Abrunhosa/Abril Comunicações S.A.

Na matéria, assinada ainda por Hamilton Ribeiro, como meu pai tentou emplacar como seu nome de trabalho, e Chico Buarque de Hollanda, como o artista testava como nome artístico, esta foto em que os dois trabalham na mesma mesa, cada um em uma ponta, foi publicada cortada ao meio, sem o repórter.

Eu a encontrei por acaso, no departamento de documentação da editora Abril, o Dedoc, onde fui procurar outras fotos do acidente do meu pai no Vietnã, além da imagem clássica que virou a capa da revista Realidade com o relato dele da guerra e do acidente que sofreu, que depois foi ampliado e publicado, pela editora Brasiliense em 1969, em um livro intitulado “O Gosto da Guerra”.

Este livro está sendo republicado agora, pela Companhia das Letras, em edição caprichadíssima, e com outras cinco reportagens escritas pelo meu pai para a revista Realidade. Por uma questão de espaço, o perfil de Chico Buarque é uma das boas histórias que acabaram ficando de fora.

***** Agora, leia abaixo o texto de José Hamilton Ribeiro, jornalista, autor dos livros “O Gosto da Guerra”, sobre sua experiência no Vietnã, “Pantanal, Amor Baguá”, sobre o Pantanal, e “Música Caipira – as 270 Maiores Modas”)

Chico Buarque de Hollanda

Compositor, autor teatral e escritor. Vencedor do Prêmio Camões em 2019

[RESUMO] Reportagem de 1972, assinada pelo repórter José Hamilton Ribeiro e pelo próprio Chico Buarque, apresenta a ascensão vigorosa do cantor e compositor que, pouco mais de cinco anos depois de lançar seus primeiros compactos, havia se tornado um sucesso comercial estrondoso e uma unanimidade na crítica musical, com composições de altíssimo padrão poético e uma obra que promovia elos entre o tradicional e o novo na música popular brasileira. A Folha republica o texto, que saiu originalmente na revista Realidade, editada pela editora Abril, por ocasião dos 80 anos do artista.

CHICO ESPETÁCULO

“Depois de seis anos, ainda não me acostumei ao palco. Quando tenho um show à noite, já acordo agitado, passo o dia tossindo e entro em cena apavorado. Mas à medida que o show engrena, que o público responde, vou ficando à vontade. Na televisão, geralmente, não encontro condições para isso. É tudo muito artificial. O auditório, quando há, é condicionado, o calor é sufocante. E o cachê não costuma ser pago com menos de seis meses de atraso. Mas a televisão não se perturba: o artista é que precisa dela.”

Quando vai fazer show de apenas um dia, em qualquer cidade, a bagagem de Chico é uma sacola de plástico e lá dentro uma escova de dentes, a pasta e uma camisa. Seu empresário, Roberto Colossi, afirma que ele —se fosse um pouquinho mais profissional, um pouquinho mais preocupado em ganhar dinheiro— seria “o produto artístico mais fácil de se vender no Brasil”.

Perfil de Chico Buarque destacado na capa da revista Realidade em fev. de 1972 – Reprodução

“Na hora do show, toda a preparação de Chico para entrar em cena é trocar de camisa. E tem hora que eu fico em dúvida. A camisa que está na sacola, ali jogada a olho, às vezes está mais feia do que a que ele está usando.”

Quando o show é de mais de um dia, a mulher de Chico, a pequenina e expressiva atriz Marieta Severo (que vai voltar a trabalhar), arruma a sua mala, com tantas camisas, calças, meias e cuecas quantos são os dias de show. Chico, então, é homem bastante para abrir a mala e apanhar a roupa limpa. O que ainda não consegue é recolher a roupa usada. Assim, no fim da excursão, Chico não se esquece da mala e chega em casa com ela direitinho —só que vazia.

Tímido, desajeitado, encabulado, inquieto —isso tudo é verdade. Mas não interessa: Chico Buarque é hoje um dos maiores showman do Brasil, em solicitações e na cotação (Flávio Cavalcanti oferece-lhe Cr$ 25 mil [cerca de R$ 180 mil em valores atuais] para participar de seu programa; ele tem sempre convites para ir à televisão e para fazer shows fora do Rio; precisou prorrogar sua temporada no Canecão; um diretor insiste para que ele apareça no cinema como ator).

Fausto Canova, estudioso da música popular brasileira e também homem experimentado em shows de teatro e televisão, acha que Chico é, hoje, talvez o mais importante showman do Brasil: “Inteligente, agrada aos intelectuais e aos universitários; bonito, sem ser bonitinho, excita as mulheres e a meninada; brioso e atuante, sensibiliza a juventude; cantor de voz agradável e ajustada às suas músicas, compõe um espetáculo bom de ver e de ouvir, e com uma vantagem adicional: seu público não é específico; gente de todas as idades e condições gosta dele. A voz de Chico, segundo o maestro Rogério Duprat, tem o registro de um violoncelo e o timbre do sax-barítono”.

  1. Tímido, desajeitado, encabulado, inquieto —isso não interessa. “Como não interessa?”, pergunta André Midani, diretor da maior gravadora de discos no Brasil (Philips).

“Chico é assim porque o brasileiro é assim. O tempo que o showman precisava dizer gracinhas ou plantar bananeira no palco já se foi. Agora o povo quer ver é quem tem um bom recado a dar, e isso é o que ele tem.”

Poucos cantores no Brasil, em 1971, venderam mais de 100 mil discos, em compactos ou LPs. E Chico está em ambas as listas. Entre os LPs, segundo a Philips, com só dois companheiros: Roberto Carlos e Martinho da Vila.

O disco “Construção” criou problemas industriais nunca antes vividos pela Philips. A demanda de 10 mil discos por dia, nas primeiras semanas, levou a fábrica a contratar duas gravadoras concorrentes para prensá-los, obrigou o pessoal a trabalhar em turnos de 24 horas por dia e o futebol de sábado, rotina de vários anos dos empregados e artistas, ficou suspenso durante quase dois meses. Também, nunca antes a Philips tinha vendido tantos LPs em tão pouco tempo (140 mil nas primeiras quatro semanas).

E um fato novo se deu no mercado. Dezembro é o mês em que Roberto Carlos (campeão absoluto de venda de LPs no Brasil há quase seis anos) lança o seu disco anual e tradicionalmente subverte a parada de sucessos, indo de pronto para o primeiro lugar e lá permanecendo, incontestável, por quase seis meses. Dessa vez, Roberto encontrou uma construção pela frente e teve dificuldade para desbancá-la no Rio, enquanto continuava perdendo em São Paulo durante todo o primeiro mês. Ao final da corrida, Roberto venderá mais discos do que Chico, pois a sua procura é quase uniforme em todo o país, enquanto Chico é consumido em quase 80% no eixo Rio-São Paulo.

Mais do que um marco na carreira de Chico (a venda será igual aproximadamente a três vezes a média dos seus discos anteriores), “Construção” vem sendo apontada como um marco na música brasileira. O crítico de música Walter Silva, de São Paulo, não se dá pessoalmente com Chico Buarque. Mas diz: “‘Construção’ é o melhor disco feito nos últimos 20 anos no Brasil. Um desses que houvesse por ano, em toda a música brasileira, e eu me daria por feliz”.

CHICO E O PASSADO

“Costumo compor de enxurrada. No momento (janeiro) estou parado. Quem sabe, na próxima enxurrada consigo pôr em cena um velho projeto: um musical. Não tanto uma peça, mais uma sequência de canções novas dentro de um mesmo espírito. Por outro lado, estou trabalhando com Cacá Diegues e Hugo Carvana no roteiro dum filme. E estou pensando em montar um circo.”

No dia 20 de dezembro de 1965 houve em Campinas (SP) um show de bossa nova. Bossa nova era então a palavra mágica da música popular brasileira. De todos os artistas que participaram daquele show, talvez um só, hoje em dia, se lembre de tudo o que se passou em Campinas. Com seu insuficiente e desajeitado violão, o estudante de arquitetura Francisco Buarque de Hollanda, 21 anos, cantou, naquela noite, a sua música “Pedro Pedreiro”. Eram dois desconhecidos —ele e a música—, e a assistência quase nem os notou. Mas Chico nunca mais vai esquecer-se daquela noite em Campinas porque ali, pela primeira vez, ele subia a um palco para cantar ganhando 50 contos.

No seu primeiro ano de arquitetura, Chico Buarque já vira que tinha entrado na escola errada. Pensava que ia desenhar poéticas plantas de cidades (coisa que faz até hoje), e tudo o que o mandavam fazer era “ser mordido pela régua T” e estudar concreto protendido. Se a música não desse certo, ele seria jornalista. Ou escritor, poeta, essas coisas.

Em setembro do ano seguinte —1966— ele já estava “desconfiado” que tinha escolhido o caminho certo: dois discos gravados (compactos simples), alguns convites para televisão e shows em teatros e elogios entusiasmados pela música da peça “Morte e Vida Severina”, dirigida por Roberto Freire no Teatro da Universidade Católica. Ainda assim, era um jovem compositor conhecido praticamente só em São Paulo e, na sua situação, havia muitos outros principiantes que na mesma época chegavam ao público pela efervescência e as aberturas da bossa nova. Aí chegou outubro de 1966 e, com ele, uma explosão.

Dividindo o primeiro lugar com “Disparada”, no II Festival de Música da Record, “A Banda” pôs o Brasil inteiro “cantando coisas de amor”. Câmaras municipais começaram a conceder a Chico Buarque os títulos de cidadão honorário, mocinhas descobriam os seus olhos azuis, velhos sambistas como Ismael Silva, Ataulfo Alves, Adoniran Barbosa (que tinham virado o nariz à bossa nova) agora sorriam: “Esse sim!”. Com 300 mil discos vendidos rapidamente no Brasil (e 1 milhão e 200 mil nos EUA e na Itália), “A Banda” virou um hino nacional e Millôr Fernandes diria, de Chico Buarque: “É a maior unanimidade viva do país”.

Menos de um ano depois do seu show em Campinas, Chico passava de jovem futuroso a catedrático da música brasileira. O diploma foi passado pelo Museu da Imagem e do Som, o austero museu que até então só ouvia o depoimento de artistas consagrados e indiscutidos, geralmente bem idosos, como se corressem a registrar as vozes antes que morressem. Com 22 anos, e pouco mais de 30 músicas (algumas delas nem mesmo gravadas), Chico virou peça de museu.

Diz o crítico musical Tárik de Souza: “A ascensão estonteante parecia mágica, mas não envolvia nenhum ilusionismo. Chico e sua música tinham os pés na terra e as raízes de suas criações eram visíveis e fortes. Em sua primeira fase, a bossa nova tinha ido longe demais em experiências jazzísticas e de câmara; agora, exagerava em outro extremo”.

Cantores como Elis Regina, Peri Ribeiro, Simonal, pareciam levar a bossa a malabarismos da era do be-bop (anterior ao “cool jazz” que influenciara a bossa nova no início). Alguns compositores preocupavam-se em achar novos caminhos rebuscando épocas anteriores ou passagens pouco exploradas da música brasileira. Sérgio Ricardo, que já tinha feito uma incursão no samba de morro (“Zelão”), agora ia para o ponto de macumba (“Esse Mundo É Meu”) e procurava ligações afro-nordestinas em “Pregão”, “Brincadeira de Angola”, “Corisco”. Carlos Lira, também iniciador da bossa nova mas que fizera uma autocrítica com “Influência do Jazz”, agora com vários parceiros, tentava ora o nordestino ora o afro-samba, ora o samba de morro.

Vandré redescobria as toadas nordestinas e o baião (“Fica Mal com Deus”) e voltava a gravar com o acompanhamento simples do próprio violão (“Canção Nordestina”). Edu Lôbo, de natural ascendência nordestina (“Chegança”, “Borondá”, “Reza”), experimentava também os temas afro e chegava a “Arrastão”, “Zambi”, “Canção da Terra”. E Baden e Vinicius, após uma pesquisa na Bahia, oficializavam a corrente do afro-samba com “Berimbau”, “Consolação”, “Canto de Ossanha”, “Samba da Bênção”.

Em todas essas idas e vindas às fontes de nossa música popular, uma delas —seguramente a mais próxima, e talvez a mais rica e a mais expressiva— fica quase de lado: a música urbana, principalmente a música urbana carioca. Era por esse filão que entraria o talento e a fome de Chico Buarque.

O terreno estava quase livre: entre os compositores brancos de classe média, apenas Billy Blanco (com seus sambas satíricos da década de 50) e Juca Chaves, com as sátiras e as modinhas dos anos 60, tinham explorado a fonte. E, com um papel mais de pesquisadora do que de cantora, Nara Leão parecia apontar a mina, quando punha, em seus discos, ao lado de Chico e de Sidney Miller, os compositores de morro —como Nélson Cavaquinho e Cartola e os que, com origem no morro, se aprimoravam na cidade sem negar as origens, como Paulinho da Viola e Elton Medeiros.

Com uma obra maior, mais diversificada e mais potente do que seus competidores brancos ou pretos, Chico trouxe ao caldeirão da música brasileira os ingredientes que, naquele momento, todos pediam: o samba em várias formas (principalmente o do verso fácil e contagiante de Noel), a seresta, a modinha, o maxixe, o chorinho, a marcha-rancho.

Era o fim da bossa nova. E logo haveria uma nova explosão, muito luminosa mas muito curta: o mergulho antropofágico do tropicalismo, que iria renegar tudo o que estava aí, até mesmo —num primeiro momento— o próprio Chico.

CHICO HOMEM

“Entre os livros de meu pai a coleção da Plêiade era o que mais me atraía. Era linda, a Plêiade. E eu achava genial ler em francês. Li quase todos os clássicos franceses e a tradução francesa dos russos. Cheguei até Céline, achando-me o descobridor de ‘Voyage au Bout de la Nuit’. Aí um colega me disse que eu não tinha um mínimo de formação brasileira. Mergulhei em ‘Macunaíma’, Graciliano, Guimarães Rosa, Drummond, Bandeira.

Agora que o tempo está curto lenho lido menos, mas estou tentando me organizar.

Minha filha mais velha tem dois anos e meio. Já vai à escola, o que é ótimo. Não posso isolar a menina do mundo que a cerca. Mesmo que esse mundo não seja o ideal, não sou eu quem a vai atirar contra ele. Por outro lado, e apesar de tudo tenho certeza de que minhas filhas estarão preparadas para um tempo melhor.”

“Marieta, vem aí aquele rapaz trazer o cheque e combinar os outros pagamentos. Eu disse que é você quem trata disso, viu?”

“Mas, Chico, outra vez eu?!”

Apesar da sua falta de vocação e de jeito, Chico Buarque é hoje um homem que movimenta uma massa respeitável de dinheiro. Só o seu disco “Construção” deve render-lhe, em dois meses, perto de Cr$ 350 mil [cerca de R$ 2,6 milhões]. Sem paciência para isso de investir ou empregar, entrou em negócios desastrosos. Tentou a Bolsa e comprou ações da Açonorte a Cr$ 8,40. Dois meses depois verificou que as ações estavam valendo um quarto e que as tinha comprado no máximo da alta. Experimentou transformar a mulher em seu “ministro da Fazenda”, mas Marieta, também meio poeta, não aceitou o papel.

Gosta de viver bem e, havendo dinheiro, vive sempre o melhor que pode, com o coração aberto —e a mão também. Agora comprou uma área de 30 mil metros quadrados perto de Mangaratiba, com uma pequena baía particular e uma plantação de banana que rende até Cr$ 300 [cerca de R$ 2.200] por mês. Vai construir uma casa lá e fazer do sítio o seu refúgio. E está pronto para iniciar a construção de sua casa na Gávea, num amplo terreno de frente para o parque florestal da Guanabara.

Com 27 anos, duas filhas, a vida conjugal aparentemente bem-ajustada, Chico Buarque não se prende a nenhum formalismo ou esquema —em sua casa é difícil vê-lo calçado ou de camisa— mas é “um senhor muito respeitável”, no dizer do zelador do edifício onde ele mora e do qual é o síndico.

Acima de tudo, é um artista com muito sentido de solidariedade de classe e muita consciência de que a liberdade para o homem de criação é tão importante quanto o ar.

“Se eu deixar penetrar no inconsciente a ideia da censura, e fazer surgir um mecanismo mental automático, de autocensura e restrição, todo o meu processo de criação pode vir a bloquear-se, e daí eu não faço mais coisa nenhuma.”

O manifesto que assinou, junto com os autores mais importantes da música brasileira, contra a censura no Festival da Canção e, mais recentemente, a sua decisão de não permitir o uso da “Banda” como peça de propaganda oficial, trouxeram-lhe (ao lado de alguns aborrecimentos) muitas manifestações de apoio e criou-se em torno dele, em certas áreas, um ar de euforia.

  1. “Tem gente pensando”, diz Chico, “que eu tenho vocação de herói, ou pretenda me transformar em bandeira ou num líder das oposições do Brasil. Não é isso, eu não sou político. Sou um artista. Quando grito e reclamo é porque estou sentindo que se estão pondo coisas que impedem o trabalho de criação, do qual eu dependo e dependem todos os artistas. Mas, se defender a liberdade de criação é hoje um ato político, também não tenho por que fugir dele”.

Uma coisa ele despreza: os artistas que acomodam sua arte às concessões do momento, seja para alcançar as paradas, seja para ganhar o beijo dos poderosos.

 

CHICO PARCEIRO

“Meu contato com Tom Jobim e Vinícius, apesar da amizade, é ainda um pouco tímido. Vinícius eu conhecia de criança, era amigo do meu pai. Papai também foi amigo de Jorge Jobim, talvez por isso o Tom seja tão bacana comigo. Compus meus primeiros sambas ouvindo os deles, via João Gilberto. Isso me inibiu nas primeiras parcerias. ‘Olha Maria’, por exemplo, eu já acho mais livre que ‘Retrato em Branco e Preto’ e ‘Sabiá’.”

Além de Tom e Vinicius, Chico fez músicas com Toquinho (“Lua Cheia” e “Samba de Orly”) e Carlos Lira (“Essa Passou”). Fez letra, junto com Vinicius, para a linda canção “Gente Humilde”, do violonista Garôto. E fez música para dois poemas consagrados: “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, e “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.

Fez uma versão: “Menino Jesus”, de autoria de Dalla. No original italiano, o drama da música está em que o menino vai para a guerra e morre. O subtítulo da canção, lá, é “O Filho da Guerra”. Recriando o tema para o Brasil, e como o problema da guerra é distante para nós, Chico abandonou-o e trabalhou sobre o drama da mulher fácil. Pôs o título de “Minha História”, mas, de brincadeira, e seguindo a linha de “O Filho da Guerra” da versão italiana, Chico diz que o apelido da canção é “O Filho da P…”.

A influência de Vinicius sobre Chico não se exprime nas músicas que fizeram juntos. Tom Jobim é que é o seu grande parceiro, ainda que o casamento dos dois não tenha feito nenhum filho genial. A formação camerística e erudita do maestro Tom Jobim como que inibe Chico Buarque, no momento de criar as letras.

De outro lado, Chico só se sente bem quando trabalha com amigos —isso explica por exemplo a sua ligação de quase irmãos com os integrantes do MPB-4, conjunto com o qual ele faz todos os seus shows. E como a amizade Chico-Jobim é muito forte, é possível que o entendimento artístico entre eles chegue a um ponto que permita bons resultados para os dois. “Olha Maria”, a última música da dupla, onde Chico consegue contar uma história ao seu jeito, é bem mais redonda que as anteriores.

Mas o cientista Paulo Emílio Vanzolini é autor de teses sobre o comportamento sexual dos répteis da Amazônia, e também de grandes sambas (“Volta por Cima”, “Ronda”, “Cravo Branco”). O sambista-zoólogo garante que, desde que ouviu “Pedro Pedreiro”, já se sentiu diante de um gênio da música brasileira.

“Vanzolini, qual é o melhor parceiro para Chico Buarque?”

“Para Chico Buarque? Chico Buarque!”

CHICO MÚSICO

“Meu primeiro violão era de minha irmã menor. Era desses pequenos, de aprendiz. Minha mão não cabia entre os trastes. Chamava-se Catupiry porque era grená e tinha um som muito ruim. Para ganhar um violão de verdade igual ao do Toquinho, precisava estudar física, geometria descritiva e passar no vestibular de arquitetura. Mas eu ficava só tocando o Catupiry, tocando errado, aprendendo sozinho, de ouvido. Não sei como, passei nos exames e fui de violão novo para a Europa, com o Tuca. Perdi o violão acho que em Londres, comprei outro, espanhol, que esqueci num táxi, em São Paulo. Aprendi um pouco de teoria musical com a Vilma Graça, fiquei animado e comprei um piano. Interrompi as aulas, mas pretendo retomar. O piano é um instrumento mais completo.

A música popular tem uma vida curta. Não posso impedir (e parece que as leis do direito autoral também não podem) que uma canção minha seja utilizada, de velha, como mero veículo publicitário. ‘Com Açúcar e com Afeto’, por exemplo, virou anúncio de bombom, açúcar e afeto. O que importa é o momento da criação. Componho aquilo que quero. Depois a canção será consumida ou não, mas não como simples objeto e, de preferência, jamais como mero adorno.”

“Repare o polegar esquerdo do Chico, quando ele está tocando. É o típico jeito de usar o dedão de quem não sabe tocar violão. Qualquer bom violonista aprende cedo que o polegar só serve de apoio atrás, nunca para premer as cordas.”

Chico diz que seu violão é ruim porque aprendeu sozinho, sem sequer ver alguém tocar. Punha o João Gilberto na vitrola e repetia o disco cinquenta vezes, até alcançar a posição desejada. Mas, apesar do dedão mal-usado —e da promessa sempre relegada de voltar ao piano—, todos concordam que o violão dá a Chico o som suficiente para as suas composições que já constituem um acervo respeitável e variado.

“A Banda”, sobre renovar o batido repertório das xarangas do interior, é hoje peça quase obrigatória em todos os bailes de carnaval.

Suas primeiras músicas eram de carnaval. O violão de João Gilberto e a bossa nova foram que o encaminharam para um estilo próprio, de que “Pedro Pedreiro” e “Sonho de um Carnaval” já mostram as características básicas. Chico tirava da bossa nova alguns ensinamentos e, com acordes fortes e dimensionados, procurava uma saída melódica mais densa, mais redonda.

Começa a fundir a bossa com o samba de morro (“Sonho de um Carnaval”) ou com a seresta (“Olê, Olá”). Em “Olê, Olá”, ele começa num estilo seresteiro e contemplativo —”Não chore ainda não/ que eu tenho a impressão/ que o samba vem aí”— e logo, com a letra puxando a música, deságua em bossa nova —”Seu padre toca o sino/ que é/ pra/ todo mundo saber/ que a noite é criança/ que o samba é menino…”.

O crítico Tárik de Souza vê as coisas de um ponto de vista técnico: “A construção harmônica de ‘Olê, Olá’ reforça a ideia central: ao invés de obedecer sua sequência tradicional de passagem de acordes, ela cria um clima de suspense, reforçado na segunda parte pelos sucessivos alteios de meio tom para cada frase e a volta suave ao tom inicial, onde recomeça a progressão de imagens da música”.

Na contracapa de seu primeiro LP, Chico explica que chegou a essa habilidade formal durante o trabalho de musicar “Morte e Vida Severina”: “Aprendi que melodia e letra podem, e devem, formar um só corpo e procurei frear o orgulho das melodias”.

Para Tárik de Souza, outro dos trunfos importantes da música de Chico é a variedade dos ritmos e temas que ele desenvolve. É como se tivesse um tronco —as suas composições mais elaboradas, “Roda Viva”, “Olê, Olá”, “Construção”— e vários afluentes, e entre esses um dos mais caudalosos seria o que o próprio Chico chama de noelesco.

“Rita”, “Quem te Viu, Quem te Vê”, “Madalena”, “Juca”, “Logo Eu” seriam sambas noelescos, composições que revelam o músico intuitivo, inspirado, mas harmonicamente descomprometido. A melodia é elaborada em cima de tons básicos, num estilo tradicional de harmonia em que determinadas notas sugerem as que vêm a seguir. Acordes preparatórios quase sempre levam à tônica ou à primeira —um tipo de solução quase nunca usado, por exemplo, por Milton Nascimento, de passagens praticamente imprevisíveis dentro da harmonia.

A fonte de Chico nesses casos, lembra Tárik, não vem só de Noel. Vem também de Ataulfo Alves, no compasso arrastado de “Quem te Viu, Quem te Vê”. Vem de Caymmi, no tema e na letra de “Morena dos Olhos d’Água”. E “Malandro Quando Morre” é um samba réquiem que se aproxima de “Pranto de Poeta”, de Nelson Cavaquinho (“Hei de ter um alguém a chorar por mim/ sob a forma de um pandeiro e de um tamborim”).

Chico como que entremeia composições mais elaboradas com uma volta às origens —às vezes faz isso dentro de uma mesma música, como em “Olê, Olá” e “Bom Tempo”—, o que faz dele um permanente elo entre o novo e o tradicional na música popular brasileira. Em “Bom Tempo”, ele revive o maxixe; em “Chorinho”, traz de volta esse ritmo que só não estava esquecido dos flautistas e dos tocadores de cavaquinho e que —segundo Villa-Lobos— é o mais expressivo e genuíno ritmo brasileiro.

Uma outra face de Chico, também poderosa, é a do autor lírico de modinhas, serestas e de canções evocativas ou de lamento (“Realejo”, “Televisão”, “O Velho”). “Até Pensei” entrou na lista obrigatória do pessoal que ainda faz serenatas, e “Carolina” —um samba-canção— foi gravado com três tratamentos diferentes: por Orlando Silva (tradicional), Dick Farney (moderno) e Caetano Veloso (tropicalista).

Mas nem tudo dá samba na obra de Chico. Em alguns de seus LPs há quedas de qualidade como as discutíveis acrobacias de “Ela e Sua Janela”, no primeiro disco, ou excessivas repetições de temas como no caso de “Fica” (um samba parecido com vários outros de sua linha noelesca) e “Januária” (uma espécie de suíte de “Carolina”).

Um voo rasante, porém, começava a se desenhar com certo perigo em “Benvinda”, um samba de ritmo entusiástico, mas que não dizia muita coisa. Nessa época o resultado das circunstâncias que o levaram a passar mais de um ano e meio na Itália pareciam influir em sua obra, e Chico, naquele país, deixou-se influenciar um pouco pelo medíocre iê-iê-iê italiano e depois de “Cara a Cara” (que de certa forma repetia “Roda Viva”) entrou numa confusa fase de transição.

Seu quarto LP tem momentos dessa indecisão, mas tem também uma volta ao sincopado da bossa nova (“Essa Moça Tá Diferente”), uma toada moderna (“Rosa dos Ventos”) e um quase baião (“Agora Falando Sério”), cuja letra é significativa: “Dou um chute no lirismo/ um pega no cachorro/ e um tiro no sabiá./ Dou um fora no violino/ faço a mala e corro/ pra não ver a banda passar”.

Aí, de volta ao Brasil, o homem voltou mesmo “falando sério”. Dos tempos difíceis começou a surgir o compositor em sua fase mais afirmativa, mais cortante, mais madura. É como se ele tivesse voltado às esplêndidas lições sonoras de “Morte e Vida Severina” e, menos preocupado com a harmonia, passou a construir suas músicas amarradas à intenção da letra. É o caso de “Apesar de Você”, um samba simples, na linha dos sambões de Paulinho da Viola e Baden Powell, mas com imenso poder de comunicação e grande força melódica.

E em seu último LP —principalmente com “Deus lhe Pague”, “Construção” e “Cotidiano”— as músicas parecem extraídas da letra e sua economia permite apenas que os poemas não sejam recitados, mas cantados.

À complexidade da letra de “Construção” corresponde uma linha de apenas dois acordes, repetidos à medida que se sucedem as imagens como se ele tivesse realmente colocando laje sobre laje num edifício. Em “Deus lhe Pague” o tom sempre crescente leva a música a um ponto agudo sem solução (a linha melódica não se resolve, não volta ao começo), reforçando dramaticamente a intenção do recado poético.

Lírico ou agressivo, diz Tárik de Souza, Chico Buarque consegue uma difícil proeza: a de ser admirado e ser entendido. E tem 27 anos, está apenas começando…

CHICO POETA

“Tenho aqui um rascunho de ‘Construção’. São versos soltos, já dentro da métrica e do ritmo final. Alguns desses versos foram abandonados: ‘Pôs pedra sobre pedra até perder o fôlego’/ ‘E o máximo suor por um salário mínimo’. Num rascunho posterior, a melodia sugere o agrupamento dos versos em quadros. Só depois de concluída a primeira parte é que aparecem as alternativas: ‘Tijolo com tijolo num desenho mágico (ou lógico)/ E flutuou no ar como se fosse um pássaro (ou sábado)’ etc.

As proparoxítonas finais alternam-se à vontade, como se fossem peças. Como se tudo fosse um jogo, sobre um tabuleiro trágico.”

Com a bossa nova, a letra na música brasileira ficou mais intelectualizada, enriqueceu. Através de Vinicius de Moraes, poeta consagrado, ela deu um imenso salto em direção à qualidade, e Vinicius permaneceu incontestado até que Caetano e Gil de um lado, de outro Chico Buarque, levaram-na a um altíssimo padrão poético.

professor Antônio Houaiss, da Academia Brasileira de Letras e reconhecido como um dos homens mais eruditos do Brasil, aprecia (num trabalho feito para Realidade) as letras de Chico. “A criação de Chico Buarque vem sendo uma escalada” —de paz.

Sempre vinculada à música, de início talvez tenha sido mais dependente dela do que devia. A lição de “Morte e Vida Severina” foi seu primeiro grande passo: de como a poesia com palavras alheias pode preexistir à música, de como esta pode ser fiel àquela. Depois —muito além da “Banda”, mas mantendo-lhe os grandes valores deliberadamente ingênuos e profundos— houve a segunda explosão, “Roda Viva”, isto é, de como música e poética se fundem para mais que lirismo, fazendo-se expressão de mágoa coletiva desespero-esperançada.

Agora, atinge maturação, sensível em quase tudo o que dele vem, representável em “Deus lhe Pague”, “Cotidiano”, “Construção”, para só referir momentos cruciais. Neste instante do poeta, agoniam-se algumas coisas: como é que alguém, tão cedo, pôde chegar a tanto?

Como poderá vir a ser mais ainda? Como foi possível dar tanto à sua gente com o só instrumento do seu sentir, saber e amar?

Aos requintados (aos do “ah!” para com a “música popular”, para com a ” poesia popular”), há que lembrar-lhes que a artesania de “Construção”, por exemplo, se emparelha, na sua sofrida singeleza, com a de qualquer grande poema antigo-novo: os dois blocos contrapesados de quatro quadras e sua finda; a quintilha final e seu remate aberto; o jogo descomparativo dos “como” —3 — 1 — 4 — 2: 3 — 1 — 4 — 2: 4 (“quebrados” pelos “feito” em lugar de “como”)— valorizando palavra dita sem valor; o recurso patético ao proparoxítono humorístico ou sarcástico ou satírico tornado sonambúlico, irônico, trágico, crítico; os apoios fonéticos internos; o combinatório aleatório das rimas —sempre válidas, para quaisquer dos versos, nas possibilidades continuadas geradas pelo poema, de tal modo que a sua remembrança obsessiva pede o esquecimento da posição de cada uma, pois cada uma passa a acumular o valor de todas as outras para reiterarem-se sempre renovadamente não apenas como sonoridades significativas, mas como uma tomada de consciência, como um protesto, como uma náusea, como uma gana, como amor, como antifuzil, como a triste alegria de saber que a alienada tristeza de hoje pode ser também fonte de construção de amanhãs cantantes.

CHICO E O FUTURO

“Você sabe, no tempo da bossa nova a produção de violões subiu demais. Assim como acontece hoje com as guitarras e os amplificadores. É natural que o adolescente de hoje esteja vidrado em John Lennon. Assim como eu era vidrado em João, Tom, Vinicius, há dez anos.

A vantagem que a gente levava era a proximidade dos ídolos. Estavam ali, palpáveis, nos teatros e nas faculdades. Como estavam ali a garota de Ipanema, a opinião e o morro que não tem vez. Por isso acho que foi mais fácil a gente entrar ‘na deles’ do que será para o adolescente de hoje entrar na dos Beatles. Eles entram mas entram atrasados, entram de tabela através de uma divulgação comercial. Mas seria impossível apontar outros caminhos para os futuros compositores. Eles vão compor com base no que consomem hoje, não nas raízes ocultas.”

Eis um teste: ligue o rádio a qualquer hora e veja quantas estações você precisa passar para encontrar um som brasileiro.

Desde que o rádio dispensou os artistas e passou a funcionar quase exclusivamente com discos, alguma coisa mudou no ar do Brasil. Nossas maiores gravadoras são estrangeiras e, entre as nacionais, quase todas têm representação de gravadoras do exterior.

Em números absolutos, juntando-se LPs e compactos, são feitos mais discos estrangeiros do que nacionais em nosso país. E, em geral, os discos estrangeiros são de melhor qualidade —artística e técnica— do que os nacionais (por exemplo, um disco brasileiro é gravado em quatro ou seis canais; um americano, em 32. Além do fato de que, na média, os músicos e arranjadores americanos são melhores do que os nossos).

Walter Silva, cronista de música e produtor de shows, diz assim: “Em São Paulo, a proporção às vezes chega a 5 por 1; cinco músicas estrangeiras para uma nacional (sem contar as madrugadas sertanejas). E isso, como é lógico, condiciona o ouvido, principalmente das crianças. Chico Buarque cresceu ouvindo Caymmi, Noel, Ataulfo, João Gilberto, bossa nova. Mas o Chico Buarque do futuro, que hoje tem sete, oito anos, ouve quase exclusivamente o chamado ‘som internacional’ e, na hora de compor, certamente comporá iê-iê-iê, rock e ‘international sound’. Isso, para mim, é colonialismo cultural”.

Há um outro lado da questão. A bossa nova desembocou em Chico Buarque, em Caetano Veloso e no tropicalismo. Tudo era muito discutível, mas muito vivo. No momento, entretanto, em que Caetano, Gil, Vandré e o próprio Chico precisaram ir para a Europa, um grande vácuo de música brasileira se abriu. Coincidiu com o esvaziamento dos festivais nacionais de música e com o declínio do iê-iê-iê nacional (agora praticamente restrito a Roberto Carlos). Com isso, desde o tropicalismo nenhum outro movimento de massa surgiu na música brasileira.

Atuando em faixa própria, bons compositores —como Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Jorge Ben e outros— continuaram fazendo suas coisas, mas isso não era bastante para uma retomada dos tempos de diversificação de ofertas musicais como na época da bossa nova, por exemplo. Imperou, então, a música estrangeira, a ponto de surgir na Câmara dos Deputados, como salvação nacional, um projeto restringindo a ação da música estrangeira a 30% do tempo nas rádios e TVs.

O vazio da música brasileira no ar era tão dramático que o soul, um movimento de cantores e compositores formados na corrente do sucesso da música americana, teve êxito fulminante: Tim Maia, Ivan Lins, Paulo Diniz vendem milhares de discos.

Mas o “soul brasileiro” não foi suficientemente forte para quebrar o império do som estrangeiro. Do primeiro para o segundo semestre de 1971, usando pesquisa do Ibope, o crítico carioca Julio Hungria aponta o declínio da música brasileira. Entre os compactos simples, a venda de nacionais caiu de 57,5% para 37%; os estrangeiros subiram de 42,5% para 63%; entre os LPs, os nacionais desceram de 72,5% no primeiro semestre para 53,5% no segundo, enquanto os estrangeiros iam de 27,5% a 46,5%.

Mais do que os artistas, o disco tornou-se o show. Dois disc-jóqueis cariocas —Big Boy e Ademir— transformam-se em showmen, com a grande função de chegar nos palcos, anunciar os discos e colocá-los no prato… E duas revistas de variedades americanas —Cash Box e Billboard— transformaram-se, por via de ação dos disc-jóqueis e da programação das emissoras, em ditadoras do sucesso no Brasil. Novos conjuntos musicais já não se contentam com o nome americanizado; cantam direto em inglês.

Mas no finzinho do ano passado, as coisas pareciam mudar. Nas notícias de jornal, nos shows, na vendagem de discos, a música brasileira retomou a frente. Chico, Bethânia, Roberto Carlos, Tim Maia disputaram entre si os primeiros lugares na parada de sucessos. A virada começou no meio do ano, com “Apesar de Você” e “Minha História”, de Chico Buarque. E ganhou força definitiva com “Construção”, “Deus lhe Pague”, “Cotidiano”.

O crítico Tárik de Souza vê um bom sinal: “Chico representou uma espécie de ligação do tradicional com a bossa nova, depois viu morrer o movimento e surgir o tropicalismo. A partir de ‘Apesar de Você’ e principalmente ‘Construção’, ele parece destinado a cumprir uma nova missão, talvez ainda mais importante. A julgar por seu atual sucesso, ele está abrindo de novo o caminho do mercado aos autores mais criativos da música brasileira moderna. Música, que, apesar de todas as distorções de uma pesada estrutura industrial, é aplaudida e vende quando consegue ser bem divulgada”.

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