MATÉRIA ESPECIAL – Lei de cotas terá revisão e corre risco de acabar ainda neste ano
Por Gisa Veiga
A Lei de Cotas (12.711/12), que garante maior acesso de pretos, pardos, indígenas e de pessoas com deficiência às instituições de educação superior no Brasil, passará por uma revisão neste ano. Isso significa o risco real das cotas serem extintas.
Essa revisão está prevista na própria lei, que estabeleceu um prazo de 10 anos a partir da data de sua vigência. Para bloquear qualquer movimento nesse sentido, os deputados Carlos Zarattini (SP), Valmir Assunção (BA) e Benedita da Silva (RJ), todos petistas, apresentaram o projeto de lei 3422/2021 na Câmara dos Deputados que estende para 50 anos o prazo para revisão. Mas o projeto ainda não foi incluído na pauta de votações da Casa.
“Essa política de cotas nas universidades é fundamental para a inclusão e acesso à educação superior de uma parcela significativa da população brasileira que ainda sofre com barreiras estruturais ainda hoje não superadas como, por exemplo, desigualdade social, falta de oportunidades, deficiência no ensino público e racismo”, sustentam os autores da lei, também organizares de um abaixo-assinado que circula na internet em apoio à prorrogação do prazo de revisão e criadores do movimento “Cota sim”.
Preocupados com uma possível extinção das cotas, os petistas apelam para uma votação urgente do Projeto de Lei. Na justificativa do PL, eles afirmam que as políticas de ação afirmativa se demonstraram eficientes.
REAÇÕES DA OAB
A presidente da Comissão de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, Mislene Santos, observa que há uma desigualdade secular para com as chamadas classes subalternas (mulheres, negros, LGBTQIA+, além de pessoas com deficiência). “Essa desigualdade é sistêmica e estrutural e precisa ser combatida por meio de políticas públicas e ações afirmativas, como as cotas. Temos que ver as lacunas abertas e alimentadas dessa desigualdade ao longo da história”, disse, frisando a necessidade da manutenção das cotas.
Para Álvaro da Silva Gomes, que assumirá a vice-presidência da mesma comissão da OAB, apesar de mais da metade da população brasileira ser composta por pessoas pretas e pardas, essa proporção não está sendo representada nas universidades públicas federais. Ele considera o ato de revisão da lei de cotas “uma medida extremamente precoce”.
Diz Álvaro: “O sistema de cotas surgiu através da Lei 12.711/12 e veio trazer equidade racial, oportunizando que essas “minorias” pudessem ter acesso ao ensino superior, se qualificarem profissionalmente e ocuparem os mais diversos tipos de empregos. O art. 7º da Lei 12.711/12 impõem que seja promovida a revisão deste programa especial (cotas) quanto o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos, indígenas e de pessoas com deficiência no prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, ou seja, a revisão poderá ocorrer este ano (2022). No entanto, o ato de revisão na presente década, é uma medida extremamente precoce”.
Segundo ele, pelo fato do presidente Jair Bolsonaro ter afirmado abertamente que não há racismo no Brasil, e por ter ocorrido algumas denúncias de crimes raciais envolvendo o governo federal, há uma grande preocupação de que o sistema de cotas seja cessado prematuramente. “A Proposta de Lei – PL 3.422/21 visa prorrogar por 50 anos o prazo da suposta revisão do programa especial, pois tem-se a esperança que será minimizada ainda mais a desigualdade racial nessa época. Com isso, poderá ser dispensável o respectivo programa. Assim, a nossa comissão apoia plenamente a proposta de Lei que visa a prorrogação da revisão para o ano de 2.062”.
JUSTIFICATIVA DO PROJETO
Na justificativa do Projeto de Lei, os autores lembram que pesquisadores da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos (EUA), analisaram dados das instituições de ensino superior (IES) brasileiras para entender o efeito das políticas de ações afirmativas, como o sistema de cotas, nas matrículas de grupos minoritários. “O resultado publicado na revista Economics of Education é a de que essas políticas funcionam. Houve um aumento de 9,8% no número de estudantes negros e pardos, de 10,7% de estudantes de escolas públicas e 14,9% de estudantes de nível socioeconômico mais baixo em universidades”, destacam.
Segundo informam os autores do PL, a pesquisa estadunidense analisou informações de matrículas em universidades brasileiras no período de 2004 a 2012. Os especialistas usaram como base dados fornecidos por 163.889 estudantes inscritos no vestibular de 48 universidades federais. “O artigo ‘Ação afirmativa nas universidades brasileiras: efeitos na inscrição de grupo salvo’ (Andes, 2020) apontou que universidades que adotaram políticas de ações afirmativas com critérios raciais explícitos experimentaram um aumento na matrícula de estudantes negros, enquanto as universidades que adotaram apenas critérios socioeconômicos não tiveram mudanças significativas no perfil racial de seus alunos”, acrescentam, na justificativa.
” À época da edição da lei, em 2012, não se tinha talvez ideia de quão seria relevante a legislação para o acesso e inclusão de setores minoritários socialmente. E nem que passados os dez anos, prazo em que instituído para a sua revisão, ela ainda seria tão atual e necessária. Por isso, este projeto objetiva a ampliação deste prazo de revisão por 50 anos e adoção de medidas complementares”, salientam.
Apesar dos avanços, os deputados defendem que as ações afirmativas são necessárias até que os fundamentos da desigualdade ainda existente deixem de existir. “Ainda resta muito a avançar”.
Os petistas afirmam que negros, pardos e indígenas são os que mais contribuem para os índices de evasão escolar, devido principalmente ao acesso precário a estruturas de internet. “Não menos importante, as relações estruturadas pelo racismo e pelas desigualdades materiais ainda não foram superadas por nossa sociedade. De acordo com dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) Contínua Educação 2019, no ano passado, 3,6% das pessoas de 15 anos ou mais de cor branca eram analfabetas. Já entre pessoas de cor preta ou parda, a taxa chega a 8,9%”, comparam.
” É necessário ainda que o Estado Brasileiro se responsabilize pela permanência desses jovens, garantindo o direito não apenas à vaga, mas também às condições necessárias para a conclusão do curso. Por isso, o projeto inclui na lei a institucionalização do Programa Bolsa-Permanência. Por fim, é necessário que a política seja acompanhada permanentemente de maneira a verificar sua efetividade e eficácia, sugerindo alterações para melhorá-la e mesmo medidas complementares que contribuam na dissolução dos fundamentos da desigualdade socio-racial no Brasil”, defendem, propondo também a criação do Conselho Nacional das Ações Afirmativas no Ensino Superior, composto por representantes do Ministério da Educação, do Congresso Nacional, da Andifes (reitores de universidades federais), do Conif (Conselho dos IFs), do Fonaprace (Fórum de Pró-Reitores de Assistência Estudantil), da União Nacional dos Estudantes, da União Brasileira de Estudantes Secundaristas, dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs), do movimento negro e de povos indígenas.
O Conselho teria como uma de suas funções estimular e realizar uma avaliação permanente da aplicação da lei, elaborando relatórios a cada cinco anos, sugerindo medidas complementares a serem tomadas pelas universidades. “Isto nos faz entender que políticas de reparação são necessárias para não retroceder em conquistas já estabelecidas”, insistem os petistas.