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“Normalizei ser uma das únicas”, diz Flávia Cintra, repórter cadeirante do Fantástico

Ser reconhecida como uma das únicas repórteres cadeirantes, com uma deficiência severa, em uma grande rede de TV no mundo já não incomoda mais Flávia Cintra, 51, há 14 anos atuando no Fantástico, na TV Globo. “Normalizei”, diz ela.

Embora há mais de uma década em uma das maiores vitrines da emissora, só mais recentemente Flávia, que ficou tetraplégica aos 18 anos após um acidente de carro, começou a ganhar mais visibilidade em pautas relativas à inclusão e diversidade.

Fez reportagem nos EUA, onde testou um exoesqueleto que a deixou em pé e a fez dar alguns passos, foi comentarista das Paralimpíadas no Sportv e encabeça a apresentação de um especial inédito, “Falas de Acesso”, que discute o orgulho de se ter uma condição física, sensorial e intelectual diferente e o “nada sobre nós, sem nós”, um dos lemas do grupo social.

A atração, que estreia na segunda (23) teve o envolvimento de cerca de 30 pessoas com deficiência divididas em todas as suas etapas, criação, direção, elenco e apresentação, e deve ter acessibilidade para todos os públicos.

Só recentemente, você ganhou uma projeção maior dentro da Globo como protagonista de debates de diversidade. Acessar é demorado?
Não é só no ambiente de trabalho que as coisas são mais demoradas. A Globo é gigante e passos de gigante precisam ser mais lentos porque você pode esbarrar onde não deve e provocar um estrago. Tive vários momentos de estar em mais destaque e outros de ter uma atuação mais reservada. Isso é normal. O que não contradiz a percepção de que, sim, as coisas para a gente [pessoas com deficiência] são mais demoradas. Por diferentes motivos, todos envolvendo o capacitismo.

A gente vive ainda numa sociedade de pessoas adultas que foram criadas sem a oportunidade de convivência com as diferenças. É um aprendizado que acontece em tempos diferentes, da experiência de acesso de cada um. Desde que cheguei na Globo fui cercada por um movimento de acolhimento e de vontade genuína de fazer a minha vida acontecer do jeito mais equitativo possível. Dentro do possível e na velocidade possível, as coisas foram acontecendo para que eu tivesse autonomia para trabalhar.

É inédito numa grande TV brasileira um programa exclusivo para tratar do orgulho das deficiências, ainda mais tendo uma mulher cadeirante como apresentadora. Como foi construir o “Falas de Acesso”?
Por muito tempo acreditei que a gente não precisava desse movimento do orgulho para as pessoas com deficiência. Acreditava que a deficiência devia ser uma característica neutra. O que impacta na minha vida, na vida de qualquer pessoa com deficiência, é o entorno. É a família, quais os recursos, qual o repertório, que serviços consegue acessar, qual o conjunto de possibilidades que ela vai ter oportunidade de acessar e qual é o grau do capacitismo que envolve tudo isso.

Ter uma deficiência faz parte da minha identidade. E é importante que eu seja reconhecida, valorizada e respeitada por isso também. Minha deficiência me define também porque ela me atravessa, ela me impõe uma experiência de estar nesse mundo.

Acho muito disruptivo, muito poderoso a gente poder falar isso na TV Globo e em rede nacional. E a minha expectativa é, com isso, avançar mais um passo. A empresa tem um papel relevante de contribuir para uma sociedade mais justa em todas as pautas. Finalmente chegou a vez da gente, de falar sobre pessoas com deficiência. Eu já comemorei, me emocionei, vibrei, sem imaginar que eu seria convidada para apresentar.

Você é uma representante incomum dentro de um programa chamado Show da Vida. Como isso se reflete em você? Como é ser uma das únicas repórteres tetraplégica numa grande rede do mundo?
É muito louco falar sobre isso, mas eu meio que normalizei esse sentimento. No Brasil, mundo, as pessoas com deficiência que ocupam espaço de visibilidade, são conhecidas pelo nome. É o Jairo [Marques] da Folha, é a Mara Gabrilli (PSD), do Senado. A gente já não tem mais essa experiência com pessoas pretas, com pessoas da comunidade LGBTQIA+. Elas já se misturam, já estão em todos os lugares. Claro que elas têm as suas dores e sofrem, porque a nossa sociedade ainda é excludente, mas os outros movimentos sociais estão muito mais na nossa frente. Então, eu sou a Flávia, da Globo. Não tenho a ilusão de que não me identifiquem pela minha imagem da mulher na cadeira de rodas. Mas acontece muitas vezes das pessoas confirmarem que sou eu pela minha voz.

Você foi aos EUA testar um exoesqueleto que propaga o ‘voltar a andar’. Não é algo contraditório ao lema do programa que é o orgulho de ser quem é?
Nunca foi sobre voltar a andar. É sobre a experiência de caminhar. Eu, inclusive, tomei muito cuidado para nunca falar voltar a andar, porque essa expressão mexe com o imaginário de cura, de reversão, e não é isso. Sabia que ia provocar as pessoas de diversas maneiras. As pessoas com deficiência não são um bloco homogêneo. São pessoas com experiências diferentes e com expectativas e origens diferentes.

Para mim, ficar em pé e andar, dar aqueles passos, tem um significado totalmente diferente do que teria para alguém que nasceu com uma deficiência. É lembrar como é olhar o mundo lá em cima do meu 1,80m, é algo emocional. Não preciso fingir e não dizer que adoraria poder andar de novo. Antes, eu tinha medo que as pessoas sentissem pena de mim porque eu não posso mais. Agora, aos 51 anos, já tenho uma história.

Pude abraçar o meu filho olhando para ele, no olho dele, de pé. Isso não tem nada a ver com andar, pensar em trazer esse recurso para minha vida. É mais parecido com saltar de paraquedas. Você não pode voar, mas você pode ter a experiência de voar. Fiz questão de terminar aquela reportagem voltando para a minha cadeira de rodas porque é nela que eu continuo a minha jornada.

Você teve protagonismo nas Paralimpíadas com participações no Sportv, mas houve críticas pela falta de transmissão na TV aberta. Como lida com isso?
A Globo pagou pela transmissão das Paralimpíadas, coisa que nenhuma emissora fez. A Globo abriu o sinal no Sportv. A gente teve uma cobertura na TV aberta, teve boletim em toda a programação. Teve entrada ao vivo na programação. Teve uma cobertura no Jornal Nacional. É inegável que a gente ocupou mais espaço do que em edições anteriores. Mas é também incomparável a projeção das Olimpíadas e das Paralimpíadas. Essa reivindicação é nossa, da vida, desde sempre.


Flávia Cintra, 51

Repórter do Fantástico, na TV Globo, desde 2010. Foi inspiração de Manuel Carlos para personagem da novela Viver a Vida. Fundadora do Instituto Paradigma, que representou na ONU durante Convenção Mundial dos Direitos das Pessoas com Deficiência. É mãe dos gêmeos Mateus e Mariana, de 17 anos

 

Matéria transcrita do portal da Folha de S. Paulo
Foto: Lucas Seixas/Globo/Divulgação

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