Porto do Capim: conheça a incrível jornada de resistência dessa comunidade de JP
Às margens do Rio Sanhauá, mora dona Maria de Lourdes, pescadora e agricultora ribeirinha que até hoje sobrevive do que a terra dá. “A primeira vez que eu entrei em uma canoa pra pescar, aos 15 anos, fiquei chorando de medo, porque eu não sabia remar. Quem me ensinou foi meu esposo e todo dia eu ainda remo.” Há mais de 60 anos, ela vive do que a natureza oferece, assim como outras mulheres que moram na região do Porto do Capim, que fica no Centro Histórico de João Pessoa.
Peixes, moluscos e crustáceos proporcionam parte do sustento de famílias de pescadores e pescadoras que ainda sobrevivem da pesca artesanal. Hoje em dia, a dinâmica territorial e de subsistência se reconfigurou, mas os traços identitários e a herança ribeirinha se perpetuaram ao longo dos últimos 70 anos.
A história de Maria de Lourdes não é a única que corre ao longo do Rio Sanhauá e se enraíza nas margens do rio e constituem o manguezal. As famílias que lá residem, foram recriando os laços de parentesco e mantendo formas de vida em interação com o rio, que é berço da fundação da Paraíba, em 1585, como apontam estudos divulgados por José do Patrocínio, na Revista da Academia Paraibana de Engenharia (Apenge) e por antropólogos, biólogos e geógrafos que estudaram a organização social do lugar em estudo divulgado no ano de 2019.
O nome Porto do Capim, como apontou um estudo guiado por Fábio Mura, se cristalizou devido ao grande volume de capim que chegava ali e que servia para a alimentação dos animais de tração. Eles eram responsáveis pelo transporte na cidade de João Pessoa naquela época.
A comunidade ribeirinha, formada por moradores da Vila Nassau, Praça 15 de Novembro, Frei Vital e do próprio Porto do Capim, procurou manter viva a memória e a preservação do meio ambiente da forma que conseguiram, apesar de todos os problemas que enfrentam diariamente. “Aqui são quatro subáreas e todas fazem parte do Porto do Capim e aqui a gente cresceu e se comunica sempre”, explica dona Maria de Lourdes.
Herança familiar e laços de cooperação mútua traçam formas de subsistência e resistência
Natural de Boqueirão, interior da Paraíba, Dona Lourdes conta que chegou ao Porto do Capim com 15 anos de idade, criando no local – literalmente – raízes com os produtos cultivados. “Boa parte da vegetação desse mangue fui eu que plantei, antes era só terra pelada. E aí, quando nasce um pé de mangue – árvores típica do bioma – a flor bota uma semente que se espalha com a correnteza”. O mangue e a comunidade se espalharam e, hoje em dia, cerca de 500 famílias vivem na região e sobrevivem com uma forma de organização social própria, utilizando os recursos naturais como parte de sua sobrevivência.
A pesca, a agricultura e o trabalho manual são algumas fontes de renda das mulheres ribeirinhas, práticas já utilizadas por seus pais e avós. Dona Lourdes rememora sua história ao longo destes 78 anos de vida, pois hoje já não pesca, mas planta feijão, inhame, batata, macaxeira e colhe coco nas terras da Ilha do Sanhauá, do outro lado do rio. “Quando eu pescava, todo dia a gente ia lá. Com a rede de arrasto, a gente pegava peixe e vendia na rua.” Atualmente, ela faz cocada com a ajuda de sua vizinha, Célia Regina Coutinho, que a ajuda em diversas atividades durante o dia e também criou sua família à beira do rio.
Já dona Maria da Penha Matheus, vizinha de Maria de Loudes e Célia Regina, faz bolsas, mantas e outras peças artesanais. As filhas de Maria da Penha também se engajam nas atividades da mãe, ajudando-a no ofício. Dona Lourdes, dona Maria da Penha e Célia Regina são um exemplo claro da colaboração mútua e da dinâmica territorial que se expandiu na região. É a partir de diversas atividades manuais, agricultura e pesca que as mulheres do Porto do Capim produzem parte da riqueza cultural e financeira da comunidade.
Estes ofícios fazem parte de um estilo de vida particular à população ribeirinha do lugar, que se perpetuou por décadas, desde que as famílias passaram a habitar o porto. “Há processos de sociabilidade e uma linha de parentesco que caracterizam de forma específica as chamadas ‘filhas do porto’ e dos moradores do entorno. Há um entendimento errado por parte de algumas pessoas de fora da comunidade, de que a população estaria vivendo em um espaço degradado, o que não é verdade. Isto criou um estigma no estilo de vida dos moradores do porto”, explica o antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador do Comitê de Laudo Antropológico da Associação Brasileira de Antropologia.
Coletividade
O senso de coletividade e a sororidade estão presentes em todas as atividades diárias das mulheres e, diante dos problemas que foram surgindo, elas se reuniram e resolveram criar organizações que colaborassem para a manutenção da vida da população das margens do Rio Sanhauá.
Com isso, surgiu as organizações Comissão Porto do Capim em Ação (2010), a Associação de Mulheres (2014) e as Garças de Sanhauá (2015), que são o resultado de uma longa jornada nestes 70 anos de resistência ribeirinha. As Organizações da Sociedade Civil (OSC) desenvolvem ações de fomento e preservação cultural, ambiental e turismo ecológico em função de salvaguardar esse patrimônio cultural para a história de João pessoa.
Embora a vida no Porto do Capim soe como uma vida distinta do COTIDIANO DA cidade – e que de fato é – ela sofreu fortes influências do processo de urbanização de João Pessoa, Bayeux e Santa Rita. A população necessitou lutar por seu território, com o risco de terem que sair de suas casas para reconfigurar a região, que sofre, de fato, com fortes impactos socioambientais. Isto gerou uma série de conflitos que necessitaram de intervenção do Ministério Público Federal na Paraíba (MPF-PB) para garantir que a população pudesse continuar em seu território original.
Resistência
O MPF-PB ajuizou uma ação, em 2019, evitando que as famílias fossem retiradas do local e solicitou um informe técnico antropológico, garantindo que as trajetórias familiares dos moradores do local possuem uma história vinculada ao lugar e organização com fortes laços e senso de comunidade.
Além disto, no mesmo ano, a deputada estadual Cida Ramos (PSB) propôs o Projeto de Lei Ordinária (PLO) 319/2019, que declarava a comunidade do entorno do Porto do Capim como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado da Paraíba. O intuito do PLO) foi de fortalecer o valor histórico e ecológico do lugar.
A organização comunitária resguarda a valorização da identidade cultural e das tradições locais, muitas vezes ameaçadas por intervenções externas, como foi o caso do Porto do Capim. Ameaçada a passar por desapropriações, boa parte da comunidade resistiu na região e adquiriu o direito de permanecer lá, além de ser contemplada com uma reforma prevista pelo Governo Federal por meio do Novo PAC.
Turismo
O processo de resistência com a criação das Organizações da Sociedade Civil (OSC) no local rendeu frutos para o turismo, que desempenham papel fundamental na mobilização da sociedade e turismo comunitário local. Na comunidade, é possível realizar passeios guiados.
O projeto Vivenciando o Porto do Capim é um dos projetos que explora o turismo na área, por exemplo. São passeios turísticos que são realizados por meio do coletivo Garças de Sanhauá e pode ser agendados por meio do telefone: (83) 988847660 ou pelo Instagram @turismoportodocapim.
Célia Regina explica que esse trabalho tem a força da juventude, principalmente das gêmeas Rayssa e Rossana Holanda. “Elas lutaram muito por a gente aqui esses anos todos. Todo mundo lutou, na verdade”, relembra Célia, que fala dos momentos de angústia antes de ganhar o direito ao território. “A gente não dormia direito. Foi muito sofrimento, graças a Deus acabou.”
A matriarca da comunidade, dona Lourdes, é a memória viva de um legado ancestral que mantém viva a história e as tradições do Porto do Capim. Como uma figura importante, ela representa a resistência e a conexão profunda dos moradores com o território, transmitindo conhecimentos e inspirando a juventude local a continuar lutando e mantendo viva a cultura ribeirinha. “Eu estou aqui há mais de 40 anos e não quero sair daqui nunca mais”, enfatiza dona Lourdes.
Reconhecimento como comunidade tradicional garante o direito à terra
Grupos culturalmente diferenciados, com processos de parentescos e raízes fortes fincadas ao território em que vivem, as chamadas comunidades tradicionais, são povos que desenvolvem uma relação específica com o território e o meio ambiente. Este é o caso do Porto do Capim. No entanto, o antropólogo Fábio Mura, explica que a comunidade tem uma dinâmica territorial que diferencia-se de outras formas de vida, ressaltando que a organização comunitária local é estruturada por laços de parentesco e vizinhança com forte cooperação mútua. Com base nessas condições sociais, o MPF-PB encomendou um laudo antropológico que analisasse densamente os laços de sociabilidade dos moradores e sua relação com a terra.
“O laudo antropológico de demarcação de terra foi realizado pela dinâmica de parentesco, com mais de 1500 pessoas”, explica Fábio Mura, responsável por um dos relatórios técnicos e laudo antropológico que ajudou a reconhecer a comunidade ribeirinha.
Ele explica que o trabalho realizado foi intensivo e contou com dois geógrafos, quatro antropólogos e dois biólogos que fizeram desenvolveram o relatório em modelo de informe técnico, entregue ao MPF-PB que serviu como base para encerrar o assunto no Superior Tribunal Federal, pela então ministra Cármen Lúcia Antunes, com decisão favorável à permanência da comunidade no lugar.
Ele ainda acrescenta que “Um laudo antropológico é um documento técnico utilizado para compreender processos socioculturais e caracterizar uma comunidade.” Neste caso, o pedido para a realização do informe técnico foi realizado pelo Ministério Público na Paraíba para ajudar a garantir a regularização fundiária e o direito assegurado pelo estado brasileiro ao território em que a comunidade vive há aproximadamente 70 anos.
Governo estadual recebe recursos para revitalização
Em solenidade com o governador João Azevêdo, o presidente Lula anunciou, em agosto deste ano, um investimento de R$ 100 milhões para prover a infraestrutura essencial no Porto do Capim. Como anunciada pela imprensa paraibana, a ideia é fortalecer a comunidade, melhorar o saneamento básico e áreas de convivência. O projeto ainda prevê a construção e reforma de habitações, com foco na valorização cultural do território.
O investimento faz parte do Programa Periferia Viva, vinculado ao Ministério das Cidades do Governo Federal. No Guia do Plano de Ação consta que abordagem de transformação territorial será ancorada na valorização da organização social e comunitária, com ações que dialoguem com o conjunto de necessidades identificadas em cada território. Com o investimento anunciado, espera-se que as demandas da comunidade sejam atendidas, oferecendo infraestrutura digna e respeitando o valor cultural e social do Porto do Capim.
Texto de Marcella Alencar para o Jornal A União deste domingo, 13/10
Fotos: Roberto Guedes/A União