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Velozes e furiosos

Por Gisa Veiga

 

A vida vale um retrovisor? A pergunta foi feita pelo pai da mais recente vítima de um Porsche no trânsito. O acidente — ou assassinato? — aconteceu em São Paulo, na madrugada de segunda-feira (29). O motoboy Pedro Kaique Ventura Figueiredo, 21 anos, foi quase esmagado pelo caríssimo carro esporte que vinha a uma velocidade de quase 140 km/h, segundo simulação feita pela Polícia Científica. Lembro que a velocidade máxima permitida na Avenida Interlagos, onde se deu o “acidente”, é de 50 km/h.

Não faz muito tempo, outro motorista de Porsche ganhou o noticiário da imprensa por irresponsabilidade no trânsito. Esse comportamento seria um mal exclusivo dos proprietários desse tipo de carro? Ou seria de qualquer motorista possuidor de veículos de luxo, de modo geral, que se sentem donos do trânsito? Ou, ainda, seria um mal comum a todos os motoristas, ricos ou pobres, que descontam no trânsito algum ódio ou frustração reprimidos?

A versão do motorista que matou Kaique é de que o motoboy havia quebrado o retrovisor esquerdo de seu carrão. Ah, tá, então isso seria uma justificativa? Quanto custa o retrovisor? E o retrovisor vale a vida do motoboy? Após a quebra do equipamento e uma discussão no trânsito, o Porsche perseguiu a moto de Kaique até esmagá-la contra uma árvore. O motoboy foi socorrido em estado grave, mas não resistiu e morreu logo ao chegar ao hospital para onde foi levado. O responsável pelo acidente foi preso em flagrante e indiciado por homicídio doloso, com dolo eventual e motivo fútil. Inicialmente, o caso foi registrado como homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A Justiça o manteve em prisão preventiva, após audiência de custódia.

Trânsito virou praça de guerra. É certo que o brasileiro, nos últimos anos, vem se tornando raivoso, destilando ódio contra o próximo, cultivando uma impaciência que leva a extremos em várias esferas da vida. Esse estilo pit-bull de ser vem sendo levado, cada vez com mais frequência, ao trânsito não só de cidades grandes como São Paulo.

Já faz algum tempo em que vi um carro de luxo — acho que era um Ranger Rover — à minha frente quase encostar em outro que estaria, indevidamente, com uma velocidade abaixo do normal em faixa esquerda na BR-230. Em vez de dar sinal com o farol, o motorista do carrão preferiu chamar a atenção para o erro do outro buzinando a poucos centímetros de sua traseira – um celta simples, cujo condutor, por birra, demorou a tomar o lado direito da rodovia. Levou uma coleção de insultos e mais buzinadas ferozes, devolvendo em silêncio um gesto grosseiro com um dos dedos da mão. Será que o motorista do Ranger Rover faria o mesmo se o outro veículo fosse um Porsche?

O delegado que iniciou a apuração do caso falou em “fúria” de Igor Ferreira Sauceda, 27 anos, o proprietário do carro importado. Em nome de uma superioridade da qual ele supõe ser detentor, poderia também ter colocado em risco a vida da namorada, que vinha com ele.

E essa não foi a primeira vez que Igor perseguiu, com seu possante veículo, outros motoristas. Ele faz do seu carro uma arma. E das mais perigosas. A família de Cleusa Souza e Erinaldo Joaquim dos Santos, ex-sócios do nervoso condutor, também foi vítima de perseguição. O casal estava com a filha deles, Beatriz Santos, quando a cena aconteceu. Pelo menos não houve vítimas. Velocidade e fúria não combinam no trânsito, tanto quanto ingerir bebida alcoólica e dirigir em seguida.

Excesso de velocidade é uma das infrações mais comuns em qualquer lugar do Brasil. Adicione uma boa dose de ódio, e a combinação vira ainda mais explosiva. É preciso rigor em casos como esse, como fez a Justiça de São Paulo.

Velozes e furiosos podem ser assassinos cruéis. Como se a vida não valesse nada. Nem mesmo o valor de um retrovisor.

 

Artigo publicado originalmente no Jornal A União

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